Josemaría Escrivá
Pensava eu que essa de delfinatos já era. Primo, porque delfim não rima com democracia. Secundo, porque com o espírito de competição que se instalou nas democracias que conhecemos não é compatível com a existência de «dinastias», nem mesmo encapotadas. Terço, porque a questão da sucessão é um assunto sério que exige planeamento, forte investimento na incubadora de lideranças e criação de espaço para debate de ideias, não podendo, por isso mesmo, ser ditada por nenhum tipo de apadrinhamento ou por mera afinidade entre o substituído e o substituto.
Cá entre nós, sempre pensei que, caído o regime de partido-estado, não mais haveria espaço para a prática do delfinato. «Quem quer uste, que lhe custe», diz o vulgo. «Quem tem unhas é que toca guitarra», diria o portuguesinho.
Mas, logo, no primeiro Congresso após a derrota de 13/01/91, Aristides Raimundo Lima acederia ao posto de Secretário-Geral do PAI, pelas mãos de Pedro Pires. Tido como o delfim deste último, cedo surgiram algumas dúvidas sobre a capacidade de Lima para combater o movimento rabentola, detentor de um discurso virulento e que decidira pela eliminação ternurenta do que chamavam o «partido velho». Até Pires teve dúvidas. Aliás, que casta de padrinho lançaria o afilhado assim às feras?! Assim, faz de Lima Secretário-Geral do partido, mas, à cautela, institui o cargo de Presidente de honra que reserva para si próprio. O delfim estava protegido.
Mas Lima não resiste à investida ventoinha. Pires é obrigado a voltar à ribalta. Estatutariamente, o chefe do partido deixa de ser o SG e passa a designar-se Presidente. Desaparece o posto honorífico, que fora desenhado à imagem e semelhança de Pedro Pires.
Mas Pires tem uma grande surpresa. Ele, que colocara um seu delfim na chefia política do partido, vê-se a braços com um problema completamente novo no PAI: é desafiado por um miúdo oriundo das fileiras da JAAC-CV e dos bancos da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas, de seu nome José Maria Pereira Neves. A surpresa é tanta, e tão ameaçadora do status quo, que Pires não enfrenta José Maria sozinho. Rodeia-se de três Vice-Presidentes (uma curiosa combinação intergeracional, com Silvino Manuel da Luz, um peso pesado da velha guarda, e os jovens activistas Felisberto Alves Vieira e Manuel Pinto Frederico). Neves não se acobarda e diz, para quem quis ouvir, que respeitava Pires e o seu percurso político, mas que o velho Comandante era chão que já dera uvas, bananeira que já dera cacho. Que não tinha mais nada a dar para Cabo Verde. Era um apelo forte para um voto de confiança na sua juventude.
José Maria perde o pleito, mas ganha a pole position para os embates do futuro. Soube logo que tinha posto em causa não só o delfinato de Pires, como a própria velha guarda do seu partido, composta, na sua maioria por combatentes das frentes da Guiné.
Não estranhou nada que, em 2000, em um Congresso que o próprio Neves achava desnecessário, este se tenha elegido Presidente do PAI. Foi um golpe decisivo no sistema de delfinato. Pires deixa Felisberto (seu delfim e seu Vice-presidente) à sua sorte. Diz quem sabe (parece ser mais uma lenda urbana, mas, who knows?!) que, interpelado porque não aparecia a apoiar a lista F, liderada por um seu delfim e recheado de piristas, Pires teria respondido desta forma enigmática: Não é Primeiro-ministro quem quer. Para bom entendedor…
Mas estranhou que um jacobino como Veiga não tivesse aprendido a lição do seu adversário de estimação. Nesse mesmo ano, na altura em deixava a liderança do partido e do Governo para embarcar na aventura presidencial, não hesitou e fez-se substituir por um seu delfim, de seu nome, António Gualberto do Rosário. O delfim viria a falhar em toda a linha. O preterido Jacinto Santos não tem a fleuma de José Maria Neves. Bate com a porta e vai fundar um novo partido. E, desde então, o partido não se encontra. Alinha sucessivas vitórias nas eleições locais, mas falha o alvo quando a questão é ganhar uma maioria, um Governo ou um Presidente. Por essas bandas creio que o delfinato já era. Foi de muito triste memória.
Contava que, agora, quando a disputa por lugares elegíveis, por cargos de destaque e por outras prebendas, se tornou tão acirrada; após as experiências (nada agradáveis, por sinal) do PAI e do MpD, num passado recentíssimo, acreditava piamente que delfins, nunca mais. Ledo engano.
E isso, confesso, me deixa confuso. Se os dois maiores (para não dizer os únicos) partidos do cenário nacional tiveram “viagens” desagradáveis de cada vez que ensaiaram a substituição do líder pelo seu delfim, porque cargas de água um deles parece estar agora decidido a repetir a dose?
Porque se Manuel Inocêncio Sousa diz que só sai do Governo quando lhe aprouver (confesso que não ouvi directamente da boca dele, mas li e foi-me contado por gente acima de qualquer suspeita), isso só pode significar que tem garantias do Primeiro-ministro, a outra pessoa que poderia fazê-lo sair. É que ele é peremptório: DAQUI NÃO SAIO, DAQUI NINGUEM ME TIRA. E isso soa a discurso de delfim. Delfim velho, discurso inoportuno, mas, quand même, discurso dinástico. Se não, o que mais justificaria a atitude de Inocêncio Sousa? O que lhe daria tamanhas garantias?
Declaração tão musculada quanto a de Inocêncio, só ouvira ainda de Paulo Portas, Presidente do CDS/PP e Ministro de Estado e da Defesa do Governo de José Manuel Durão Barroso (coligação PPD/PSD – CDS/PP). Em plena crise da Universidade MODERNA, quando todo o mundo pedia a sua cabeça, porque envolvido até às orelhas no escândalo, eis que Portas, do alto dos 9% do CDS/PP (ou seriam 6?), declara: EU SÓ SAIO DO GOVERNO QUANDO QUISER. Mas Portas estava fazendo, claramente, uma manifestação de força. Chantageava Barroso, descaradamente: SE ME AFASTARES DO GOVERO, RETIRO O CDS DA COLIGAÇÃO E FICAS SEM MAIORIA PARA GOVERNAR. O QUE DECIDES? É PEGAR OU LARGAR.
Terá Inocêncio cacife para desafiar José Maria Neves, de forma tão ostensiva? Pode fazer cair o Governo de JMN? Ou tem a maçonaria do seu lado e JMN conta com o seu apadrinhamento para entrar também? Pessoalmente, estou em crer que a atitude, a postura e o comportamento de Inocêncio são de alguém que se sabe garantido ao mais alto nível. E uma tal garantia só pode vir de José Maria Neves.
Mas mesmo sendo esse o caso, Inocêncio está equivocado. Não sai quando quer. É que o protector pode deixar cair o protegido (o delfim, o afilhado) num estalar de dedos. Like that. É o delfim que depende do padrinho e não o contrário. Talvez lhe valesse de algo investigar para ficar a saber como é que Zé Maria ultrapassou Filú sem que Pires mexesse um dedo; como Filú ficou chateado si quando ouviu, pela comunicação social, que o padrinho, contra todos os sinais (não teriam sido, antes, garantias?) que lhe dera, iria bisar na corrida presidencial (2006).
Agora, por exemplo, bastaria que Neves revisse os resultados conseguidos pelos delfins cá de casa, reavaliasse as garantias dadas a Inocêncio e se decidisse pelo encerramento, com chave de oiro, da era dos delfinatos, deixando cair o «seu» delfim. Para que aprenda a não desconversar.
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