Tuesday, July 24, 2007

Filinto Elísio na apresentação da obra "A VIÚVA VIRGEM", no passado dia 23 de Maio

“A VIÚVA VIRGEM”

Por Filinto Elísio Correia e Silva

Devo agradecer a todos por estarem aqui a prestigiar o nascimento de mais um livro, desta feita um romance, cujo autor António Ludgero Correia é dilecto filho desta cidade da Praia que hoje, mais do que nunca, se afirma como babel intelectual e cultural de Cabo Verde. Dizia-me Ludgero Correia há dias que a Praia passa por um grande momento cultural, facto notório e notável, para o bem de Cabo Verde, e, acto contínuo, admiti que o meu interlocutor seria também um dos promotores e protagonistas desta movida praiense. Por isso, antes do livro, esta nova criatura literária, queria saudar e agradecer ao criador deste momento bom, saudável e necessário.

Uma ressalva, pois “noblesse oblige”. Não me compete uma análise crítica do livro, que ora se dá à estampa e com o qual tenho o compromisso desta apresentação. Compromisso que me dá gozo, prazer e orgulho, diga-se de passagem. A análise crítica de um livro, mormente romance, exigiria de mim mais ciência e mais arte, bem como menos ímpeto de leitor livre – assumido Albatroz, de Baudelaire - porquanto seus cânones são de preceitos mais estritos e especializados.

Por conseguinte, não se espere de mim, senão pinceladas referenciais, subsídios, se tanto, de um leitor atento e interessado, ciente e cioso de ver nascer e prosperar, nestas ilhas nossas, os seus narradores implacáveis. A escrita romanesca é trabalho de monta, de montagem e de articulação, que escapa a intelectuais bissextos. Foi-se o tempo em que se acreditava que um livro era produto de um surto de inspiração. Hoje em dia, quase todos sabem que, além de ter talento, um escritor tem de se debruçar sobre seu trabalho, refazê-lo quantas vezes for necessário até que ele tome sua forma definitiva. Já, por isso, o nascer de um romance resulta de uma longa gestação e de um estranho parto, pelo que nos inspira já o simples facto de mais este encontro de cultura, na Biblioteca Nacional.

Muitos teóricos defendem que para o início da vida literária o género apropriado é o lírico; no meio da vida, o dramático; e no entardecer da idade, como diria Eugénio Tavares, o épico, de onde vêm as narrativas mais densas. António Ludgero Correia, inquieto intelectual, começa pelo texto narrativo, por onde muitos terminam. Este é o primeiro aspecto inusitado da seara literária do Autor. E saiba-se que a narrativa é privilégio da maturidade.

Primeiro, foi “Baban, o Ladino”; agora é “A Viúva Virgem”, que nasce sob o signo da água. Logo no início, Ludgero Correia adopta uma atmosfera fantástica que traz a inevitável lembrança de um “Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. (…) Chovia a cântaros. Desde que Samuel se conhecia como gente, nunca vira precipitações tão abundantes. Nem na época própria, mormente em pleno mês de Maio. E não era apenas pelo volume dos bagos ou pela violência com que caíam. A chuvinha lenta das primeiras horas do dia fora-se encorpando, transformando-se, aí pelas nove e meia, em verdadeiro dilúvio (…).
Um dos elementos fundamentais deste romance é o seu enredo (em inglês, plot). Diria até no plural, enredos. O romance de António Ludgero Correia é de enredos múltiplos e engenhosos. Um deles é o mistério sobre a virgindade da viúva, que a sociedade local precisava “destocar”. Que enigma por trás de Maninha, com a viuvez impoluta de dez anos e com o casamento sem filhos? Este enredo em torno da problemática se processa nestes termos:

(…) – Calma, minha filha. São os teus hormónios gritando dentro de ti. Você enviuvou cedo e isso deixa as suas marcas. Mas você é jovem e pode voltar a casar-se e ter filhos. A propósito de filhos, tens que consultar um médico para veres se o problema é contigo ou se era com o falecido.

- O problema era com ele – desatou Maninha a chorar, desalmada e desconsoladamente.

- Calma, menina, calma. Okay, já passou. Já passou. Desculpa lá, mas como é que podes saber que o problema era com ele?

- Eu sou virgem, Lena. Eu sou virgem – e continuou chorando e soluçando desconsoladamente, perante uma dona Lena de boca aberta. (…)
Outro aspecto importante: Os ‘caracteres’ dos personagens bem definidos. Ludgero Correia introduz aqui a personagem central – a Maninha, ainda antes da viuvez.

(…) – Maninha da Várzea da Igreja? Aquela bonitinha que canta na igreja? Aquela que faz aquelas linguiças tão saborosas? Essa, padrinho? (…)

Entretanto, ao longo dos capítulos, encontramos dezenas de outras personagens que ganham importância e se infiltram nos enredos – a Manadona, o Samuel, o Pároco e outras -, sendo o primeiro plano da narrativa ocupada pela linha existencial de Maninha e outros planos preenchidos pelas personagens gravitantes.

Outra questão essencial é o narrador. Ludgero Correia faz uma recusa do conceito de ‘narrador omnisciente’, aquele que sabe tudo da história. Aqui há uma entrega da narrativa a vários narradores intermediários, que ignoram o todo dos acontecimentos e só contam a linha do que sabem, interpretando-a à sua maneira. Isto aproxima Ludgero Correia do romance proustiano, em que o autor, ele-próprio, perante a autonomização das personagens-narradoras enfrente o dilema, diria até a angustia, de imprimir vector estanque aos enredos. Contrariamente ao romance flaubertiano ou mesmo balzaquiano, o autor assume-se múltiplo contador de histórias, qual trama Shakespeariano em que os pontos de fuga se deslocam para comnpor a grande trama afinal, o ritual de “destocar” a Viúva, deixada virgem e próspera, o sair do casulo familiar e social e o assumir da autonomia feminina, quiçá mesmo feminista, de Maninha e o insólito sentimental amoroso, quebrando paradigmas sociais, familiares e religiosos, entre a Viúva Virgem o Senhor Samuel Barbosa.

É por isso que as personagens vão surgindo com seus dramas e derivando entre o eros e o tanatos, o sacro e o diabólico, em construções que vão da mais singela pureza ao mais engenhoso profano, como é o caso dos desejos de Maninha, em paralelo ao quadro psico-existencial de Emma Bovary, no romance “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert.

(…) Pôs o vestido xadrês que Dona Lena lhe comprara na Quarta na Praia, colocou um trancelim de prata ao pescoço, colocou uns sapatos pretos. Colocou-se à frente do espelho do quarto e submeteu-se ao teste dos seus sentidos. Gostou do que viu, do que sentiu e do seu próprio cheiro. Dona Lena caprichara no eau-de-toillete. Levou as mãos ao peito e, timidamente, apalpou os seios. Estavam lá. E ainda estavam firmes. (…).

Mas, antes, a construção do cerco existencial à personagem central:

(…) Quando o marido de Maninha falecera, ela era ainda muito nova. Vigiada pela família do falecido e por sua própria família, guardara luto pesado e castidade por mais de dez anos. As duas famílias reunidas decidiram que a madrinha dela deveria ir morar com ela para evitar que caísse em tentação.

Se bem o pensaram, melhor o fizeram. Manadona mudou-se de mala e cuia para a casa da afilhada. Por determinação dela, ninguém entrava ou saía da casa da afilhada depois do Sol se pôr (…)

Surpreende também no romance a economia dos elementos, como tempo, espaço e personagens. Sabe ele que é difícil administrar muita gente em pouco espaço e pouco tempo; pois as personagens têm peso e ocupam espaço. Assim, vão se desfilando as mais estranhas histórias e trajectórias. É a relação de Samuel com suas filhas, Isabela e Zizi.

(…) – Mas nossos amigos não fazem isso – protestou Zizi timidamente.
-Amigos, não. Vossos homens. Acham que me enganam? Quem fica como uma galinha tonta só porque se vai encontrar com um amigo? Quantas vezes já vos vi saírem sem comer para ir encontrar-se com esses filhos da puta?

-Credo papá.
-Credo, nada. E esses banhos longos que agora tomam? E essa troca de calcinhas, três quatro vezes por dia? Principalmente a senhora, dona Isabela. Você que só tocava calcinha debaixo de porrada, agora passa o tempo brigando por elas. Quem pegou minha calcinha? Esta não é minha. A minha é novinha. Comprei seis novinhas anteontem. Diabos carreguem esses sacaninhas. (…)

São os diálogos entre Manadona e o Pároco, este interessado em Maninha.

(…) – Credo, padre. Rezar em português? Isto é um absurdo. Quem foi o pateta que inventou isto? – abespinhou-se Manadona.

- Psst! É coisa dos comunistas que estão rodeando o Santo Padre. É preciso ter cuidado. Parece que eles manobram o homem do jeito que querem – confidenciou o padre.

- E o que o gente vai fazer?

- Resistir, Manadona, é claro. Resistência silenciosa, é certo, mas vamos ter que resistir. Vou organizar um grupo de reflexão e oração em latim. A senhora é a primeira contactada. Aceita? (…)

São as conversas dos mirones, quando passa a Viúva a caminho da Igreja. As fantasias de sensualidade em torno de Maninha, que arrancavam libido no paráco, no enfermeiro e na rapaziada da esquina. Os mexericos de meio provinciano sobre os bens da Viúva e sobre o controlo apertado da madrinha Manadona. Os “abusos” de Alípio, que não desgostavam de todo a Viúva, balbuciada virgem:

(…) – gostosa – ouvia Alípio sussurrar, sempre que a madrinha afrouxava a vigilância nas idas à igreja.

Ela fingia não estar nem aí, mas sentia um calorzinho por dentro sempre que ele se aproximava dela.

Alípio sempre arranjava uma forma de se aproximar dela:

- A bênção Manadona – pedia Alípio, tentando colocar-se entre Manadona e Maninha.

- Vade retro, Satanás. Vai pedir a bênção à tua madrinha. Sai daí. Vamos Maninha. (…)

E até o desastroso primeiro encontro entre Samuel e Maninha Vieira:

(…) O encontro com o senhor Samuel deixou Maninha nervosa. Não sabia se se sentava ou se ficava de pé. Levantava-se e voltava-se a levantar de seguida.

-Veja lá o desaforado. Quem pensa ele que é? – seguia resmungando. Um açougueiro. Um magarefe. Um homem que ganha a vida tirando a vida de coitados animais. Quem pensa ele que é.

Lena havia desistido de tentar acalmá-la. Maninha não queria ouvir ninguém. Parecia que só a sua própria voz lhe dava algum consolo. (…)

“A viúva Virgem”, é um romance maduro, de grande densidade e suspense, escrito surpreendentemente por um intelectual de quem, até há dias, ninguém vaticinava um lugar próprio e merecido na moderna literatura de Cabo Verde. Este livro desenvolve-se num universo inédito, logo a articulação de todos os seu pormenores formam um verdadeiro mundo, um recriado mundo. O eixo entre São Domingos e a Cidade da Praia, mas com referências pelo Santiago adentro, recriando lugares até então inéditos na ilustração literária e peças etnográficas importantes, para não dizer preciosas. Igualmente, as figuras-tipo que formula, como a costureira Lena (a tentadora do libido adormecido de Maninha), o senhor Pachinho e a dona Nema (figuras marcantes do meio) e outras. Para não se falar das transposições simbólicas, como o facto de ser Caiumbra a sombra de Coimbra, que emprestava áurea e peso ao lugar, legitimadores de prestígio social das pessoas, tal fora o caso de Patrício. É esta a riqueza de “A Viúva Virgem”.

António Ludgero Correia, escrevendo a epopeia das criaturas que fazem parte do nosso quotidiano, ainda que as ficcione nos limites elevados da boa escrita, se torna, entre nós, um intelectual fundamental. Ademais, ele assume o que qualquer bom livro deve ser: tem de convencer o leitor que está a viver a história, que é verdade, fazendo-o deixar a realidade para se sentir na pele das personagens ou como um observador muito próximo. A forma como ele nos convida a acompanhar a relação entre Samuel e Maninha é magistral:

(…) E Samuel já nem se lembrava como se lhe instalou na cabeça a ideia de domar aquela potranca. Nunca nenhuma mulher o tratara desse jeito. E logo uma fedelha! Ele quase que podia ser pai dela.

- Mas não sou, não é? – recriminava-se.

Resolvera que Maninha Vieira haveria de vir comer-lhe à mão e Samuel era teimoso que nem um burro. Falou da sua ideia a Manadona que foi aos arames:
- Então ela tem razão. Você faltou-lhe ao respeito – ademoestou.

- Nada disso. Você me conhece. Fiquei ofendido e agora vou mostrar-lhe quem é Samuel Barbosa. (…)



Não só por esta precocidade inusitada, mas também e sobretudo pelo alegórico, pelo fantástico e pela finitude que subjazem do seu texto, o livro merece ser “destocado”, aqui e agora. Pessoalmente, deliciei-me com seus vai-vens, sua riqueza sintáctica e vocabular, suas imagens tão vivas, suas brincadeiras semânticas. Por isso, recomendo-o como leitura prazenteira e necessária.


Muito Obrigado.

Thursday, July 19, 2007

DECLARAÇÃO DE MAIORIDADE TOTAL

OU PORQUE NÃO DOU TROCO A «MEIOS-TOSTÕES»
Li algures, ainda menino e moço, que um fulano só se poderia considerar homem feito depois de (1) PLANTAR UMA ÁRVORE, (2) EDUCAR UM FILHO e (3) ESCREVER UM LIVRO.
Ora, no passado dia 16, Segunda-feira, o meu filho mais novo (o JÚNIOR, que é Biólogo de formação e mestrando em Biologia Molecular) completou 27 (vinte e sete) anos; a minha filha do meio (a AÏCHA, que é Economista pela UNESP, MBA pela UAL e mestranda em Finanças pelo ISCTE) já é mulher feita e mãe de uma linda menina que vai fazer 08 anos já no Domingo 22/07; e o meu filho mais velho (o KWAME, que é Engenheiro Mecânico de formação, Mestre em Engenharia de Produção e Doutorando em Automação) já conta 32 (trinta e dois) anos e é pai de duas lindas meninas, brasileiríssimas, de 09 e 05 anos respectivamente. Quero crer qu estes factos fazem de mim um fulano que já educou, pelo menos, 03 (três) filhos.
Na minha casa de campo em São Jorge dos Órgãos, Chã de Vacas, pontificam, pelo menos, 03 manguerias, 02 acácias rubras, 02 amendoeiras, várias papaieiras, azedinhas, limoeiros, laranjeiras, palmeiras e coqueiro, plantadas por mim entre 1999 e 2004; estas árvores (e alguns arbustos) foram plantadas por mim e a maioria frutificou já.
Escrevi e publiquei já 02 romances (BABAN, o ladino e A VIÚVA VIRGEM); na Tipografia Santos encontra-se já pronta para divulgação a obra SAPATOS DE DEFUNTO; em poder do jornal A SEMANA está o material completo para a publicação de A CORRESPONDÊNCIA DE FIDALGO PRETO (um livro de crónicas escolhidas, publicadas naquele semanário de 2001 a 2004). Serão, para já, mais de 03 livros escritos.
Dentro daquela ideia de que é preciso plantar uma árvore, educar um filho e escrever um livro para que nos possamos assumir como homem feito, com todos os efes e erres, e diante da obra feita (plantei mais de 03 árvores, eduquei 03 filhos e escrevi mais de 03 livros) DECLARO-ME HOMEM de, pelo menos, 03 costados. O que me dá um gozo danado de bom!
E diante de tal consagração (algo de que nem todos que usam calças e fazem xixi de pé se podem vangloriar); não me tendo nunca submetido a laços comestíveis degradantes; e dando-me muito mal com espécies rastejantes; registo aqui que não darei troco a nenhum «meio-tostão» rastejante e «escobêro». Pelo menos até que seja promovido a «tostão».
REGISTE-SE.

Monday, July 16, 2007

O poeta FILINTO ELÍSIO na apresentação do livro «BABAN, O LADINO», EM 30/04/07

ALGUNS SUBSÍDIOS PARA A LEITURA DA OBRA “BABAN, O LADINO”, DE ANTÓNIO LUDGERO CORREIA

Por Filinto Elísio*

O romance Baban, o Ladino, de António Ludgero Correia, Prémio SONANGOL de literatura 2006, é uma proposta de prosa inédita e inusitada. Algumas marcas, bem expressivas, contribuem para fazer desta obra uma narrativa diferente, diria até singular dentre os que tenho lido, no campo da literatura cabo-verdiana contemporânea.

O primeiro aspecto que ressalta é a deslocação permanente do autor, que é narrador central, nas entrelinhas, mas fá-lo de forma marginal no texto aparente. Umas vezes, através do diálogo-narrativo. Outras vezes, através do diálogo subentendido, mas assumidamente explicativo da trama, afinal as venturas e desventuras de Baban, durante tempos de carestia e fome.

Indo directamente ao livro, impõe-se dar pistas aos leitores em relação à centralidade, de uma personagem-força, o Baban, que “viveu e reinou na Praia”, a reconstituir toda a trama. Como a personagem-força de “D. Quixote de La Mancha”, de Cervantes, esse Alonso Quijano, acompanhado do não menos emblemático Sancho Pança, Baban se densifica ao longo do romance, impondo o seu ritmo de ser e de estar no espaço de acção. É um Baban que surge, logo nas primeiras páginas do romance, nos anos da Fome de 40, com “a metade de uma casca de coco numa mão, pedindo um bocado de comida”.

Outro aspecto a reter é o foco múltiplo da narrativa. O autor desloca os pontos do narrador e Dona Lídia, mãe do narrador matricial, comanda a descrição ontológica:

1º - A caracterização da personagem central – o Baban – afinal protagonista de histórias burlescas na cidade da Praia, vindo do zoon-out do interior de Santiago e chegado ao zoon-in do espaço urbano e uterino da reprodução romanesca;

2º - A explicação do espaço narrativo – Vila Nova, cincundância e circunstância, alargando-se ou diminuindo-se - recriando uma visão, quase cinematográfica de espaço móvel e também activo protagonista versus o espaço fixo e pacífico, trilha de fundo das histórias;

3º - A fixação temporal – anos 40, da Fome, das Pragas e da Grande Guerra, dos Expedicionários Portugueses -, fazendo do Tempo um activo na reconfiguração do Homem e do Espaço. O Tempo, neste romance do Ludgero Correia, é Tempo-Actor-Participante, elemento reconstrutor igualmente;

4º - O pictórico antropo-social – o Homem em face do sócio-económico e do sócio-cultural, no caso o Baban e outras personagens gravitantes, em reformulação psíquica e da prática social em Tempos de Fome.

Destes quatro aspectos que reputo por importantes, retiraria o pictório antropo-social para centrar o meu modesto olhar de leitor interessado, apartando de mim a veleidade de ser uma voz autorizada da crítica literária e a intenção de especialista da literatura contemporânea de Cabo Verde.

Terei, neste pretenso gesto analítico, uma rápida passagem sobre a minha leitura – de apenas uma demão pela semântica geral e uma meia demão pela sintaxe particular, como dia o Poeta Cearense, Dimas Macedo – contando-vos, com intertextualidade assumida, o mérito da questão em Baban, o ladino.

I – PICTÓRICO ANTROPO-SOCIAL

O pictórico antropo-social é descrito aqui com singularidade, sobressaindo quadros-referências seguintes:

(...) A horda de famintos colocava-se em pontos estratégicos de onde pudessem identificar as casas, de cuja chaminé saísse alguma fumaça. Identificados os alvos, os integrantes distribuíam-se pelas poucas casas de chaminés fumegantes (…), isto na página 09.

O aspecto sonho/pesadelo, toda a reconstrução onírica remetida da temporalidade-Fome, perspectivados tanto da Terra Dentro, como da Cidade da Praia, Nossa Senhora da Graça, pelo Nha Lela, lá de Frouxa-Chapéu, nos seus sonhos e recados:

(…) Ele viu sete feixes de espigas rechonchudas e depois sete atados de espigas mofinas, sendo que as últimas devoravam as primeiras; na semana seguinte, sonhou com sete bois gordos que eram devorados por sete bois magros. Sonhos de Nha Lela, menino… até eu tenho medo. (…)

Em verdade, a alegoria decalcada da Maldição sobre o Egipto dos Faraós e do jogo dos Sete Cabalísticos da Religião Hebraica, é reformulada pelo autor para compor a antevisão da desgraça, com que o Homem, no espaço cabo-verdiano, antevê a Fome Braba. Di-lo Ludgero Correia: (…) fome, sede, carestia de tudo. E pior, praga de parasitas. Piolhos, lêndeas, percevejo. Nem sei se sobrará alguém para contar a estória – anunciou o mais velho. (…)

O livro começa a cruzar a psique antropo-social – do Homos em torno da sobrevivência – como os retirantes, desta feita não do sertão-cidade de Graciliano Ramos ou de Josué de Castro, nem da itenerância inter rural de “Os Flagelados do Vento Leste”, de Manuel Lopes, mas dos deslocamentos intra-urbanos, sobretudo numa segunda descrição narrativa, bem à Emile Zola, de realismo consequente.

(…) As chaminés das casas de Nha Alexandra, Nha Mariazinha, Nené de Nha Pomba e Nha Maria Sabo, entre a Planície de Vila Nova e o Planalto de Ponta d’Agua.(…)

Este pictórico refaz-se a partir da composição da linguagem. É magistral quando o Narrador (Autor ou Dona Lídia?) criam a subversão e a alteridade da linguagem. O Baban de (…) um bocado de comida e um pingo de água (…) que se desloca para (um bocado de comida e um pingo de grogue (…). O composto comida-água pelo composto de comida-grogue. A indicar o primado do dramático intro existencial, tal como nos ensinou o filósofo alemão Heiddegger, sobre o sócio-existencial Sartreano, onde o quase mutismo e apatia implicam a paralaxe dos desejos entre a Vida (Água) e Esquecimento (Grogue). E um Baban preferindo este a aquele, em plena Fome (Ausência Real de Comida, primeira parcela do composto), que exacerbava os giros pela Travessa.

Tão logo ali nos diálogos a formulação sincrética, de cultura e religião, mais condição antropo-existencial, diria tipo, da ilha de Santiago, revelado em certa dimensão na Cidade da Praia. O sincretismo reformatador de identidade.

(…) – Credo. Nada disso, senhor José (nome retirado do Bíblico São José).

- Pára com com essa merda de Senhor José. Eu sou Nené de Nha Pomba. Ou Matcho Bedjo Nha Tuna. Essa de me chamares senhor José é para me meteres o dedo…

- Credo, senhor Nené…
- Nené de Nha Pomba, já disse - cortou Nené. E sai da minha porta - rematou já quase engasgando. (…)

II – CARACTERIZAÇÃO DA PERSONAGEM CENTRAL

A caracterização da personagem central é feita de forma sábia, em retrospectiva ontológica. Baban torna-se realmente ladino, mercê dos diálogos com o Mestre, ainda criança, quando os pais desaparecem e partem, primeiro, para a Praia, e, depois, para o Sul.

Ficaria, mais tarde, mas ainda em plena Fome, na psique de Baban, a tornar-se adulto a ideia do Sul, mesclada à dupla perda edipiana. O autor faz, na página 47, o retrato dramático da opulência, que explicaria o escapismo e a evasão, não só da Mãe-Terra, mas do Filho-Ser, rumo ao Sul.
(…) De São Tomé, dizia-se que chovia sem parar. E que bastava que um passaroco levantasse o bico para cima e grasnasse “Chove, chuva” e lá vinham catadupas de água (…)
e, ainda,
(…) Havia fruta-pão em abundância, peixe seco e fubá (…).
E o Eldorado da opulência foi também descrito nestes termos:
(…) Angola era também um destino muito bom. Rica Colónia. Aliás era de lá que vinham a farinha de pau, o açúcar, o milho redondo e o lafo-lafo e várias espécies de feijão (…).

Sozinho no mundo, Baban se constrói, em amadurecimento freudiano, procurando mover-se em espaços relacionais. São os excelentes diálogos com o Professor que lhe dão a dialéctica de linguagem, o idiolecto sócio-linguístico para sobreviver, mais tarde, no espaço-fundamento, a Cidade da Praia. Alguns destes magistrais diálogos-aprendizagens devem ser sublinhados, nomeadamente:

(…) – Bem. Já reparei que sempre que o nome do Santo começa por uma consoante, se usa São; quando começa por uma vogal, usa-se Santo – enunciou Baban.

- E então? Em que ficamos? É São ou Santo Cipriano? – Indagou o professor, exigindo uma aplicação prática da conclusão.

- É Santo Cipriano – respondeu Baban, categórico.

- Como é que é? – Gritou o Professor exasperado, pouco menos que apopléctico.

- Professor, a regra parece ser de aplicar apenas aos Santos da igreja e com nomes em português. Mas para Santos porreiros, com nome da terra, a regra não é aplicável. Pode-se dizer São Cipriano, mas em relação ao nosso Santo é como o povo diz: Santo Cipiriano – explicou Baban. (…). Este diálogo conforma-se na página 34.

Por conseguinte, a personagem torna-se viva, esperta, sagaz, pronta para enfrentar a Praia, nos tempos da Fome. Baban fez-se homem aos 12 anos, sem recurso à adolescência. Seu Santo de eleição, seu recurso religioso e matafísico, perante a realidade que se recrudesce em drama, é um Santo, mais mágico que milagreiro. Um Santo astucioso, que o próprio chamamento desafiava os encontros e regras de consoantes e vogais. A Gramática, indicia ordem e disciplina, formulação jurídica, paramento que se relativiza e se subverte em face do Absurdo Absoluto, que é a fome – o tal Absurdo Absoluto e desintegrado que nos recorda “A Peste”, de Albert Camus. A Gramática não se sustenta perante o Novo Humanismo, por vezes, sob a aparência burlesca que se emana do quadro dramático, como foi a grande lição filosófica de Camus, resgatada aqui, mutatis mutandis, por Ludgero Correia.

A personagem densifica-se nos vários momentos em que é caracterizado. O namoro com a Isaura, linda menina, de família integrada. Os anos de escola. A morte do Senhor Mulato, o professor, com livro de São Cipriano aberto em cima do peito, numa referência relacional à personagem central, à morte-amadurecimento, à morte fim e recomeço de ciclo. Ao livro símbolo, semiótico e sêmea, tal qual o Trenó Rosebund, do filme O Cidadão Kane, de Orson Wells, que alavanca na peça-id e na peça-retrospecta todo o novo sentido da vida, mesmo que à hora da morte. Assim, Ludgero Correia descreve Baban diante do Mestre, do Alter-ego destruído:

(…) Então, levantou-se e enxugou as lágrimas. Lavou-se, mudou de roupa e dirigiu-se à casa do seu Mestre. Seu Mestre, seu Pai, Seu Guia Espiritual. (…), na página 63.

Com o recrudescer da estiagem, Baban resolve zarpar para a capital, Praia de Santa Maria da Vitória, cidade abençoada por Nossa Senhora da Graça, onde começaria o seu giro de esperteza e de sobrevivência nos subúrbios da Vila Nova e circum-vizinhos. Entroniza-se, no seio de uma família praiense, depois de ter dito a senha de entrada, com os rituais de qualquer iniciação.
(…) – então foi você que herdou os livros dele? – interessou-se Nené.

- Fui eu, sim senhor.

- Cita lá então o título de 4 livros de Camilo Castelo Branco que ele tinha no seu acervo. Se foste seu discípulo, hás de saber que Camilo era seu escritor preferido – desafiou Nené.

- Tinha lá “Amor de Perdição”, “Eusébio Macário”, “A Corja” e “A Queda de um Anjo”. Satisfeito? E já agora, seu espertalhão, o escritor preferido do teu tio não era Camilo. Era Eça de Queirós. Não vais querer que eu enumere as obras de Eça que tinha na sua estante?

- Izan, acho que é ele mesmo. Até da casca de banana que lhe lancei ele escapou. Tenho a certeza de que ele é quem ele diz que é – garantiu Nené.
(…), Nas páginas 82 e 83.

Chegados aqui, temos a personagem feita, matricializada, completamente construída e largada nas páginas do livro para um enredo jocoso e irónico, mas eivado de rebeldia, de um Baban que, segundo o próprio Autor, vendeu o serrote do patrão e gasta o dinheiro em pândegas com mulheres; compra um porco, a pedido de novo patrão, e só regressa uma semana depois e de mãos a abanar, inventando artifícios para se safar; come e bebe à custa de Nhô Mano e assina vales pelas tabernas com o nome de Burt Lencaster; em Ribeirão Chiqueiro, paga por uma vitela mas leva uma vanha prenha e desaparece do mapa. É um Herói-Maldito que se materializa ao longo deste romance inusitado.

Por uma opção consciente, não desmontarei as minhas ilações em relação à fixação temporal, pois os anos 40 e seus afluentes próximos foram determinantes para o Mundo e para Cabo Verde. Esta temporalidade exigiria de mim alguns rudimentos e mais tempo de que não disponho, infelizmente. Tão pouco abordarei o espaço narrativo, visto por Ludgero Correia, que vê esta cidade como um activo fundamental da História de Cabo Verde e das estórias que formulam o romanesco. Ludgero Correia é um profundo cabo-verdiano que não regateia o seu activismo pela Praia e tal virtude está implícito neste romance que faz de Vila Nova e circundância, a Cidade da Praia em geral, e outros espaços da ilha de Santiago, como os Órgãos Pequenos, ponto de partida da sua personagem central, numa cronografia que lembra um pouco o menino de Caleijão, de São Nicolau, em “Chiquinho”, de Baltasar Lopes da Silva, que se densifica doravante pelos espaços urbanos do Mindelo e do Mundo.

Em remate final, atesto que Ludgero Correia nos lega aqui uma grande obra, de leitura recomendável e prazeirosa. Em que se ri da primeira à última página. Aprisionando a angustiosa lágrima perante o Absurdo Absoluto. Aquele que se esconde sob a singeleza e a candura de um “Quimera de Ouro”, de Charles Chaplin. Porque Ludgero Correia remete todo ele à cinematografia dos nossos dias…

*Poeta

Wednesday, July 4, 2007

A VIDA, O QUE É?

A VIDA, O QUE É?
por Gonzaga, Jr.
A vida é viver
Viver
E não ter vergonha de ser feliz
Cantar
(e cantar e cantar)
A beleza de ser um eterno aprendiz

Eu sei
Que a vida devia ser bem melhor
(e será)
Mas isso não impede que eu repita
Que é bonita
(É bonita
É bonita)

(E tentem ouvir a canção na voz de Zé Ramalho. É bonita, é bonita, é bonita. Meeeeesssmooo!)

Monday, July 2, 2007

COMUNICAÇÃO APRESENTADA AO FÓRUM «ONDE ESTAMOS, PARA ONDE VAMOS», ORGANIZADO POR «A SEMANA»

ONDE ESTÃO OS POLÍTICOS? PARA ONDE VÃO?

Onde estão os políticos? Estão onde sempre quiseram estar. Numa posição que consideram vantajosa e que a cada dia se torna menos convidativa para o cidadão comum.

O sistema de partido único foi um bom refúgio, durante um bom tempo. Contra o que as aparências indiciam, tal sistema nunca foi uma questão ideológica. Lúcio Colletti[1] refere-o como um expediente da classe dominante para se perpetuar no poder. Criavam-se mil e um empecilhos, a modos de só uma certa casta de cidadãos poder entrar na órbita do poder. Cedo o expediente se estafou. Tornava-se difícil manter a situação, mormente depois do centro de tal sistema de ideias se desintegrar.
O fenómeno coincidiu com uma acutilância nunca vista da dita sociedade civil. Os cidadãos revogaram as procurações irrestritas que tinham confiado aos políticos. Deixou de haver cheques em branco. As obras já não eram agradecidas: recebeu fundos de todos nós para fazer obras? se cumpre com a obrigação (para que se ofereceu voluntariamente e sendo razoavelmente remunerado), agradecimentos porquê? Pior, começou a exigir-se conformidade entre o volume e a qualidade das obras, por um lado, e os fundos disponibilizados, por outro. Estava o caldo entornado. Como sobreviver a uma tal situação? Ser detentor do poder com tanta gente querendo controlar era complicado.

Mas o pior estava por vir: uma novíssima classe de políticos diletantes, imbuídos de um romantismo e de uma ética ímpares, querendo filiar-se em partidos políticos, mas pretendendo manter a independência de pensamento e acção. A ameaça era séria demais. Já não era apenas o controlo popular a posteriori. Perfilava-se um controlo ex-ante que deixava os políticos profissionais em pulgas. Preocupava, antes de mais, porque punha em risco a sobrevivência das castas que, tradicionalmente, gravitavam à volta do poder e se refastelavam sob as luzes da ribalta política. Incomodava porque era uma espécie de 5ª coluna, que não comungava das politiquices, intrigas, barganhas, amoralidades. Ameaçava porque os «cristãos-novos» quando não concordavam com alguma proposição, pouco ou nada edificante, ou quando eram ultrapassados por esquemas de formação interna de maioria, comentavam cá fora os deficits de democraticidade interna. Já pouco faltava para que o Rei saísse à rua em pelotas.

Precisaram, por isso, criar um novo reduto, atol, promontório, enfim, uma posição inexpugnável, a partir de onde lhes fosse fácil rechaçar as tentativas de invasão de gente para quem a política não passava da “cereja em cima do bolo”, gente para quem a política é mais um meio de dar do que de receber, ou, como diria Maslow, o meio de satisfazer a necessidade de auto-realização. Enfim, fazia-se necessário manter afastados os cidadãos que estavam mais preocupados com o que poderiam fazer por Cabo Verde do que com o que Cabo Verde poderia fazer por eles.

Na verdade, os políticos sempre se posicionaram como um homem no alto de uma montanha: lá de cima, todos os outros homens lhes parecem, cá em baixo, pequeninos e por isso carentes da sua protecção. A questão era que agora a montanha já não ofuscava os cidadãos e estes podiam, sem receio, olhar para cima. E o que viam? O homem/político, lá no alto, lhes parecia, TAMBÉM, pequenino. E daí a questionarem as atitudes, posturas e comportamentos megalómanos e a pretensa superioridade daqueles que gravitam na órbita do poder, foi um passo. Os cidadãos, em nome de uma maior transparência, resolveram que queriam os políticos cá em baixo, trabalhando em gabinetes de vidro (quais aquários) para um melhor controlo popular do poder.
O diabo é que os políticos sempre quiseram, e seguem querendo, controlar tudo e todos. E uma posição sobranceira sempre lhes pareceu indispensável para garantir uma clara distinção entre governantes e governados, entre aqueles que planeiam e executam e aqueles que têm o dever e a obrigação de cumprir. Tinham que manter uma posição inexpugnável, a partir de onde fosse fácil rechaçar as tentativas de invasão dos «cristãos-novos», que é como quem diz, cidadãos não interessados na luta pelo poder, mas muito preocupados com a forma como se gere a res publica.

Por esse mundo afora - onde há uma opinião pública consolidada; uma sociedade civil com níveis aceitáveis de organização e alguma capacidade de intervenção; e grupos extremistas (partidos de extrema direita e extrema esquerda, skin heads e outras aberrações) dando guarida e esperança aos desfavorecidos - os partidos com vocação de poder acabaram aceitando o açaimo e, paulatinamente, as coisas vão entrando nos eixos: os Le Pens, Portas, Eneias, etc., verdadeiras ameaças públicas, conseguiram o feito de fazer disparar o alarme chamando a atenção dos políticos profissionais para o descrédito da classe perante os eleitores.
E entre nós? Aqui, a opinião pública é pouco menos que inexistente; a sociedade civil está ensaiando os seus primeiros passos; os partidos pequenos foram engolidos pelas duas únicas forças capazes de se elegerem para administrar a res publica; e os mais desfavorecidos foram fanatizados, esquecendo tudo (os interesses da família, da cidade, da ilha, do país) e seguem defendendo, ferrenhamente, a supremacia de tambarinas e rabentolas. E passam o tempo louvaminhando os respectivos líderes, quais títeres.
A única ameaça ao status quo dos políticos da montanha são aqueles cidadãos que, contra ventos e marés, acreditam que o futuro da sua cidade, da sua ilha e do seu país tem de ser decidido COM ELES. Acreditam na máxima: SEJA O QUE FOR QUE SE PRETENDA FAZER EM FAVOR DOS CIDADÃOS, SE NÃO CONTAR COM A PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS, SERÁ CONTRA OS CIDADÃOS.
A luta parece desigual. Mas as barracas dos políticos são tantas; a gritante ausência de critérios em muitas tomadas de decisão; a lastimável pobreza do discurso; a duvidosa probidade; os escândalos pipocando aqui e ali; o deficit de competência técnica e as motivações claramente calculistas; a resposta política oca e desabrida, não raras vezes rasando a má-criação; constituem fragilidades que acabam abrindo fendas na muralha protectora erguida pelos políticos.
Perguntar-se-á porque os cidadãos não exploram tais fragilidades, fazendo com que os políticos se sintam acossados e voltem aos trilhos, um pouco como vem acontecendo por esse mundo afora?

Onde estão? Aqui. A política, que era para ser uma ocupação nobre, passa a ser vista como algo sujo e de que se deve manter uma distância respeitável; o debate político resvalou para o campo do diz-que-diz, do reles insulto, da exposição da privacidade e intimidade do adversário e respectivos familiares; as campanhas políticas transformaram-se em momentos de vale tudo, onde programas, projectos e plataformas foram sendo substituídos pela opulência dos brindes oferecidos à multidão, pelo barulho comprado a motoqueiros e a conjuntos ditos musicais, pela conspurcação da via pública pela propaganda gráfica adquirida com recursos a fundos de proveniência duvidosa. A participação popular em campanhas, na base do voluntariado, foi liquidada: ou se tem dinheiro para pagar, a militantes, simpatizantes, amigos e assalariados para a colocação de cartazes, dísticos e outdoors; alugar carrinhas, geradores e altifalantes e DJ’s para fazer poluição sonora; contratar intermediários para garantir que ferrenhos do outro lado não votem; ou nem se precisa candidatar. Discurso político? Debate de ideias? Confrontação pública de plataformas? Desapareceram.
Os políticos, sempre iguais a si próprios, cedo topam que o que vêm fazendo da política repugna muita gente. É disso que não gostam? Então é disso que vão ter. E vão cada vez mais fundo.

Diante de um tal quadro, os outsiders baixam os braços e fazem constar que querem distância de tal forma de fazer política. E ZÁS! Os políticos radicalizam ainda mais. De tal modo que, NOVAMENTE, estão lá onde sempre quiseram estar: num OLIMPO qualquer, inexpugnável, longe da vista e dos controlos dos cidadãos, refastelando-se, acicatando fanáticos contra cidadãos que não rezam pela mesma cartilha.

Como esperar que, num quadro destes, uma dona de casa, mãe de família, se disponha a integrar uma lista e a participar de uma campanha política? Como convencer um intelectual íntegro, que preze a sua liberdade de pensamento e expressão, a se inscrever num partido político? Como aliciar um operador económico a aparecer mais nas iniciativas da sociedade civil ou da própria classe? E foi assim que as mães de família, os cidadãos bem informados e os operadores económicos deixaram de se aventurar pelo feudo dos políticos.

Estão AGORA onde sempre sonharam e desejaram estar. Sem concorrência, sem controlo popular, protegidos contra o entrismo dos intelectuais; insultando-se nos mass media para inglês ver; mas entendendo-se às mil maravilhas atrás do muro de protecção cuidadosamente construído e protegido por fossas ao estilo medieval. Estão onde escolheram estar.

Como estão os políticos? Estão como o diabo gosta: a crer nas acusações mútuas com que se brindam amiúde, seguem comprando almas, alugando consciências e explorando a credulidade dos pobres de espírito.

Para onde vão? Para lugar nenhum, claro. Pelo menos por iniciativa própria. Se estão onde sempre sonharam!!!

A esperança é que há políticos e políticos. E porque uma das leis fundamentais da sociologia nos ensina que na situação que se vive no PRESENTE coabitam os germes do FUTURO e os resquícios do PASSADO. Tudo vai depender da correlação de forças entre os germes do futuro e os resquícios do passado. Se os políticos sérios que ainda existem (e não são tão poucos como pode parecer) deixarem entrar o «Cavalo de Tróia» e assim se reforçar a posição dos germes do futuro; se os cidadãos apertarem o nariz e reforçarem o estômago e lutarem por um espaço próprio de participação; se os operadores deixarem de temer represálias e se organizarem (pelo menos enquanto classe) para poderem ter vez e voz em tudo quanto lhes diga respeito; haverá fortes possibilidades de se reverter a situação.

As coisas estão de tal modo que a questão certa talvez fosse: PARA ONDE QUEREMOS QUE EVOLUAM OS NOSSOS POLÍTICOS? Aí a resposta parece ser mais simples. QUEREMOS QUE ELES MUDEM DE ATITUDE, DE POSTURA E DE COMPORTAMENTO em relação à opinião pública, em relação à sociedade civil, em relação ao exercício do poder. Que deixem de manipular os pobres de espírito; que deixem de comprar consciências; que se abram ao debate de ideias; que se perguntem ANTES o que podem fazer por Cabo Verde do que o que Cabo Verde pode fazer por eles; enfim, que dêem uma sacudidela no seu construto.

Por outro lado, os cidadãos, as empresas e as associações precisam de ganhar mais capacidade de intervenção pública. Pessoalmente, quero que a empresa privada tenha uma intervenção política. Desejo que as igrejas tenham uma intervenção política. É desejável que todos os corpos instituídos no país, todas as universidades, tenham um contributo mais atrevido e mais forte.
E há que deixar claro desde o primeiro momento: «O RESPEITO NÃO SE COMPRA, NEM SE IMPÕE PELA FORÇA BRUTA – CONQUISTA-SE PELA ATITUDE, PELA POSTURA E PELO COMPORTAMENTO QUE EVIDENCIARMOS NAS NOSSAS RELAÇÕES COM O MUNDO EXTERIOR». Assim como o cidadão individual, o cidadão empresa, e o cidadão instituição, respeitam o Estado e suas instituições, também o poder político (situação e oposição, enfim a classe política) deve respeitar o poder económico e o cidadão individual. Tem de haver reciprocidade[2].

Em jeito de conclusão, diria:
1. Que os políticos estão onde estão, por opção.
2. Que os políticos precisam ter causas e causas altruístas.
3. Que é urgente que repensem a sua relação com os seus seguidores: o certo é inspirar pelos valores e não apenas pelo carisma.
4. Que se espera, por essas e por outras razões, que revejam a sua atitude, postura e comportamento e, sobretudo, que se posicionem de modo a que possam ser percebidos como sendo úteis ao país e aos concidadãos.

De outro modo, aturá-los e sustentá-los, PORQUÊ?


António Ludgero Correia
[1] Teórico político e filósofo, in «A QUESTÃO DE ESTALINE»
[2] Ver António Barreto e Belmiro Azevedo in «Tiro ao Alvo» (Revista Exame, Junho/2007)