Monday, November 3, 2008

UMA ESTÓRIA DE CEGOS, SURDOS E MUDOS

“ A coisa mais fraca de todas as coisas fracas é uma virtude que não tenha sido ainda testada no fogo.”
Mark Twain
Sempre acreditei que sendo o Mercado cego, surdo e mudo aos problemas que os seus próprios processos geram, competia ao Estado estar de olho vivo, ouvidos abertos e de megafone na mão, para evitar o caos social que pudesse advir do autismo do Mercado, rei e senhor. Mas em boa verdade, o senhor Mercado só é insensível aos problemas dos outros. Agora é vê-lo, perante o precipício que se abriu à sua frente, e atento aos clamores dos seus pares, gritando a plenos pulmões por ajuda. De quem? Do Estado. O senhor Estado, aquele mesmo senhor que, fanático pelas virtualidades da economia de mercado, fez orelhas moucas às tropelias do mercado e às súplicas das suas vítimas. Afinal, esta é uma estória de cegos, surdos, mudos e paralíticos que afinal vêem, escutam, berram e se movimentam… quando lhes convém. O mercado, arrogante e auto-suficiente, acreditando que pode tudo, e que agora se prova ter sido inconsequente; e o Estado, crédulo e irresponsável, que abdicou de grande parte da sua autoridade em favor do Mercado. Resultado: uma grande salgalhada. E para salvar o Mercado, o Estado lança agora mão de soluções que abomina e que vem condenando há décadas. Mas o mais chocante é saber que quem vai pagar a factura é o Zé-povinho – o único que nunca viu a cor do dinheiro volatilizado.

Eu até compreendo o comportamento do mercado. É típico: qualquer besta, deixada com as rédeas soltas, toma o freio nos dentes e sai correndo desembestado. Até à exaustão… se antes não lhe aparecer um precipício pela frente. E a culpa não é, obviamente, da besta, mas daquele a quem competia manter as rédeas firmes e regular o freio. No caso, o senhor Estado.
A propalada, e unanimemente apoiada, saída do Estado da economia, tinha a ver com o papel de operador que vinha desempenhando (de forma insatisfatória, diga-se em abono da verdade) e com algumas soluções administrativas que impunha à economia (contra-natura, portanto). O dever e a obrigação de garantir que o mercado não se transformaria numa selva, onde imperaria a lei do mais forte, mantinham-se intactos. Diria mesmo que, em consideração aos mais fracos, a vigilância devia ser tomada muito a sério. E não foi. Falhou muita coisa na passagem do Estado operador e interventor ao Estado Regulador. Não me atrevo a escalpelizar a passagem ao nível global, mas, à luz da curta experiência cabo-verdiana, sempre podem ser tiradas algumas ilações.
Uma autoridade reguladora, para ser ágil, eficaz e efectiva, precisa escorar-se em, pelo menos, três bases: um quadro normativo moderno e claro; um quadro de competências amplas e inequívocas, capazes de outorgarem aos reguladores os necessários poder e autoridade; um corpo de reguladores capazes de se assumirem como verdadeiros magistrados (no sentido mais nobre do termo). Um investimento em benchmarking, mormente para quem esteja ensaiando os primeiros passos, pode também ser decisivo.
Mas as bases têm de funcionar cumulativamente. De nada serve, por exemplo, ter-se um quadro normativo claro e um quadro de competências amplas (amovibilidade garantida e tudo) se o regulador se revelar canhestro, tímido, burocrata ou simplesmente cobarde. Daria cabo de tudo. Por outro lado, também de nada serviria recrutar uns nec plus ultra para a regulação, se o quadro de competências for restrito e castrador. Pode acontecer ainda, depois de uma boa experiência de benchmarking, o regulador se meter a reproduzir, acriticamente, o que viu ser feito lá fora, com consequências imprevistas. E põe-se ainda a questão do modelo da regulação em si: VITAL MOREIRA manifestou, há coisa de três meses, numa Conferência na Cidade da Praia, algumas reservas em relação à regulação do sector financeiro pelo Banco Central. O B.C. não deixa de ser um banco, uma instituição financeira, o que poderia dar azo a algum corporativismo.
E há indícios preocupantes: (i) não escapa aos mais avisados que há por aqui um banco comercial que é «mais igual» que os outros e que dita regras para os demais; (ii) apesar de se ter feito um escarcéu dos diabos, durante muito tempo as agências de viagens seguiram ditando a taxa de conversão do dólar a aplicar no cálculo dos preços dos bilhetes (o dólar rolava ladeira abaixo, mas nas agências a cotação do dólar mantinha-se colada à do Euro); (iii) pessoalmente, denunciei um modelo de declaração que um banco da praça dá aos clientes (e aos seus avalistas e fiadores) a assinar que é um verdadeiro atentado à liberdade dos visados, mas a autoridade reguladora não tugiu nem mugiu; (iv) meio mundo reclamou já da famigerada taxa de expediente (400$00, mínimo) que se debita para cobrar um juro de 7$00, mas o regulador continua quedo e mudo; questiona-se que, com o nível das tecnologias de informação e comunicação de hoje e da plataforma (a mesma) onde os bancos comerciais se movimentam, só se possa movimentar uma conta a débito 24 horas depois, em caso de depósito em numerário, e 48 horas depois, no que ao cheque diz respeito (a compensação garante a boa cobrança já no final do dia), mas o regulador permanece cego. Escutam-se queixas de que as seguradoras aproveitam (quando não inventam) mil pretextos para pagarem menores prémios (ou não pagarem) e a autoridade reguladora mantém um silêncio confrangedor; a lei diz que as seguradoras têm direito de regresso em relação aos prémios que pagam quando o condutor que provocar o acidente age com dolo; e vão as seguradoras de dar o significado que lhes convém ao conceito de «dolo», exigindo pagamentos indevidos (esquecendo ou fingindo não saber que o Código Penal define quando é que se considera haver «dolo»), e o regulador… cego, surdo e mudo. Enfim, um mundo de «pequenas coisas» que clamam pela intervenção da autoridade reguladora do sector e que ficam em águas de bacalhau. Alguém acredita que não haverá também «grandes coisas» sendo objecto do mesmo laissez faire, laissez passer? Até que um dia a casa venha abaixo. E será então chegado o momento de fazer as vítimas pagarem pelos seus algozes. Como vem acontecendo por esse mundo afora, nesta crise provocada.
A Regulação, sendo uma questão séria, como tal deveria ser tratada. E, verdade seja dita, se tomarmos o caso cabo-verdiano como paradigma, o cenário é desolador. E se a presente crise servir para fazer as coisas entrarem nos carris (chez nous et partout), então terá valido a pena. Apesar dos pesares.

No comments: