Tuesday, April 8, 2008

FRONTEIRAS

"O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer." Albert Einstein

Quando se pára para ver o esforço de separação e afirmação dos Estados que foram mantidos, durante anos, preso na utopia da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas; quando se constata o esforço de afirmação de cada uma das nações dos Balcãs que, durante décadas, se viram manietadas pela camisa-de-forças que era a Jugoslávia; ou quando se pára para observar como, em África, um mesmo povo, de repente, passou a viver em países diferentes (caso dos Dogan no Burkina Faso, na Costa do Marfim e em outros países vizinhos; dos Tutsis e dos Hutus distribuídos por várias Repúblicas da África do Centro, só para citar os mais emblemáticos), fica-se com uma pequena ideia do papel das fronteiras e da violência daqueles que, fazendo orelhas moucas à história, seguiram traçando o destino dos povos na ponta de um lápis de cor.
D. Carlos (um dos últimos reis de Portugal) diante da arrogância dos ingleses teve a “brilhante” ideia de pintar de cor-de-rosa todo o segmento da parte austral do continente africano, ligando as costas do Índico (Moçambique) e do Atlântico (Angola), reivindicando-o para a coroa portuguesa. A D. Carlos só escapou o facto de que, para fazer valer o mapa cor-de-rosa, precisava de poderio militar significativo no local. Coisa que não tinha. Só para ter uma ideia do peso psicológico de uma linha qualquer de fronteira (ainda que riscada por uns aventureiros, sem levar em consideração os povos que ficam separados pelo traçado), hoje, se o mapa cor-de-rosa tivesse vingado, teríamos o Mugabe na CPLP e uma ligação bem mais forte com a SADC.
Mas as linhas de fronteira não separam apenas países e os problemas que trazem não são apenas políticos.
Veja-se o que acontece, por exemplo, nos povoados da linha de fronteira que separa o Brasil dos países vizinhos. Delinquentes brasileiros, desplazados da Colômbia e contrabandistas de várias nacionalidades, acabam transformando a fronteira em terra de ninguém, uma autêntica selva onde impera a lei do mais forte.
Virando-nos para dentro, somos confrontados com a situação de que nos dá conta a página 13 do número 843 (de 04/04/08) do Jornal «A SEMANA». O articulista, conquanto afoito por mostrar serviço (com a inflamação característica de um jovem que quer marcar a diferença), ainda assim consegue passar uma mensagem clara: a Vila Nova e os vila-novenses são vítimas da sua posição «geo-estratégica».
Na verdade, Vila Nova começou por ser o primeiro ponto de contacto, das pessoas que vinham do interior da ilha, com a cidade da Praia; com a expansão da cidade, perdeu esse papel para a Achada de São Filipe.
Entretanto, para se chegar ao Plateau (ou Riba-Praia, que para muita gente, é ainda, simplesmente, «a Praia») ou aos bairros novos do Sul da cidade, os residentes da Achada São Filipe, Monte-Agarrinha de Nhâ Joana, Safende, Tchetchénia, Calabaceira (e demais bairros nascidos da expansão da cidade, para Norte), precisam passar por Vila Nova, fazendo desse antigo bairro de açougueiros, comerciantes e mestres-de-obras, um ponto de passagem, pouco menos que incontornável. É a Vila Nova no seu novo papel de fronteira entre o novo e o velho; entre a situação social, económica e laboral do Sul e do Norte; entre a presença e a ausência de equipamentos sociais urbanos; entre a ausência e a presença de investimentos; entre remediados e desesperados.
E na fronteira tudo se mistura, tudo se confunde, nada se resolve. E é assim que um bairro (que tinha tudo para dar certo) começa a ganhar estigmas e ameaça se transformar em favela. Primeiro é a inépcia das autoridades que se deixaram surpreender pelas migrações e se deixaram levar pelos acontecimentos; depois é ausência das autoridades que deixa a regulação das diferenças nas mãos dos interessados; agora é a substituição dos poderes instituídos pela força das armas dos marginais. E há um problema novo no horizonte: o caciquismo. Muito possivelmente estimulado pelo desempenho de António Fagundes, no papel de Juvenal Antena, na novela «DUAS CARAS», da Globo.
Juvenal é rei e senhor da PORTELINHA, uma favela que ajudou a fundar. Populista, paternalista e déspota, recorre a um controlo férreo sobre tudo o que acontece na favela (lançando e cobrando «impostos», inclusivé) para determinar a sorte de cada morador. Nada acontece sem o seu beneplácito. Socorre os aflitos, mas, em troca, exige fidelidade absoluta e inquestionável; protege a favela, mas, em contrapartida, cobra choruda comparticipação nos lucros dos negócios; utiliza a Associação dos moradores e amigos da favela para exercer o controlo sobre a vida de todos. Ninguém se aventura a tomar qualquer decisão, por mais íntima que seja, sem o consultar. E veja-se o escarcéu que produziu, com ameaça de bazuca e tudo, por ter sabido, por terceiros, que o afilhado Evilázio estava para sair Vereador sem o haver, previamente, consultado. Felizmente, na novela, perde para seu afilhado, amigo e antigo braço direito. Na realidade, e no bairro, o cacique putativo perde para si próprio: nem consegue convencer o deputado do seu partido a incluí-lo na lista. E o compadre só não saiu candidato porque não quis. Porque nunca quis.
O paralelismo entre as duas comunidades é inevitável: a PORTELINHA é uma favela modelo, que faz a fronteira entre a Barra (e outros bairros «in» do Rio de Janeiro) e as favelas ditas «barras-pesadas»; VILA NOVA é (ainda) um bairro (velho, relho e gasto, é certo) com história, que faz fronteira com bairros mais novos, a braços com problemas sociais. E como fronteira, repesca o pior dos vizinhos e acaba sendo sede de confrontos com que, a maior parte das vezes, não tem nada a ver.
Mas os locais de fronteira não têm de ser, necessariamente, terras de ninguém; não há qualquer razão aparente para que a lei e a ordem primem pela ausência; não é forçoso que a população sucumba a qualquer projecto caciquista. Os desmandos que se verificam nas localidades fronteiriças encontram terreno propício porque as autoridades dos países vizinhos optaram por soltar a batata quente, quando o mais avisado seria sentarem-se a uma mesma mesa, para discutirem, equacionarem e resolverem a questão do exercício da soberania nessas localidades. São terra de ninguém porque não têm ouro, nem petróleo. Tivessem…
As localidades que, como a Vila Nova, se transformaram em fronteira entre bairros (ou grupos de bairros) de status diferenciados, em consequência da sua localização, não podem, também, ser deixadas ao Deus dará. Nem Vila Nova, nem os demais bairros que lhe ficam a montante e às quais dá passagem.
Vila Nova, Calabaceira, Safende, Tchetchénia, Monte Agarrinha de Nhâ Joana, Achada São Filipe e Ponta d’Água, precisam também ser vistos sob um novo prisma. Antes de mais, porque não é por culpa dos moradores que as coisas chegaram aonde chegaram. Depois, porque a redução das assimetrias internas de desenvolvimento e o investimento no reforço da coesão social constituem obrigação dos poderes. Ninguém poderá falar de desenvolvimento em Cabo Verde enquanto persistirem (e seguirem sendo aprofundadas) as assimetrias regionais de desenvolvimento. Ninguém ousará falar do desenvolvimento da Cidade da Praia (por sinal Capital da República de Cabo Verde) enquanto persistirem os hiatos sociais e as assimetrias de desenvolvimento entre os bairros periféricos do Norte, Sudeste e Sudoeste, por um lado, e os bairros planificados do Centro e do Sul. Como diria o grande «Che» Guevara, «ou há café para todos ou não há para ninguém».
Quanto mais fundo caírem a Vila Nova, a Calabaceira, Safende, Tchetchénia, Ponta d’Água, etc., mais frágil será a coesão social, mais complexos e mais complicados os conflitos, menos eficazes as autoridades, e mais insegura a cidade.
É preciso investir forte e célere na recuperação desses bairros e na qualidade de vida de suas gentes. É preciso que os poderes e as autoridades digam PRESENTE!, para que não sejam substituídos pelas gangs e por projectos de cacique.
E nesse propósito, Vila Nova pode desempenhar um papel importantíssimo. Estou imaginando uma delegacia municipal e uma delegação da Administração do Território sedeados em Vila Nova e comandando e coordenando as acções a partir de tal centro para o Norte. (1) Fazendo um levantamento circunstanciado das necessidades em infra-estruturas básicas e equipamentos sociais urbanos; um recenseamento sério dos jovens em idade activa e que estão no desemprego; um recenseamento rigoroso de jovens em idade escolar e que se encontram fora do sistema de ensino; um levantamento descomplexado das necessidades de orientação social (estou pensando na intervenção de assistentes sociais e de religiosos); um estudo sério virado para a revisão das relações da polícia com essas comunidades; um estudo aturado para identificação do que seria necessário para estabelecer, em Vila Nova, uma nova centralidade, desta feita positiva e virada para sociabilização das comunidades vizinhas. (2) Administrando incentivos à prática do desporto (futebol, basquetebol, vólei, futsal, andebol), da música, da dança, do teatro, cinema (pourquoi pas?); iniciativas aproximando as escolas aos pais e à comunidade em geral; apostas na organização da produção, com investimentos no know-how existente nessas comunidades; cooperação com as Igrejas visando tirar partido da experiência destas na mobilização e orientação da juventude. Estas podem ser algumas, de entre tantas possíveis, formas de intervenção na Vila Nova, e nos bairros circunvizinhos, com o escopo de (i) melhorar a qualidade de vida e minimizar os problemas sociais, (ii) esconjurar apetites caciquistas, (iii) reduzir as assimetrias de desenvolvimento, (iv) reforçar a coesão social e (v) dar um grande contributo para a instalação do clima de paz e de tranquilidade sociais por que almejamos todos e que, nos tempos que correm, têm um valor (de mercado) nada despiciendo.
E isso precisa ser feito agora. JÁ!

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