Monday, April 28, 2008

A SÍNDROME DO MICROFONE

“… os mansos possuirão a terra e deveras se deleitarão na abundância da paz.”

Salmos 37:11

Manso é coisa que me recuso a ser, apesar de tão tentador salmo. Prefiro me manter como sou desde que me lembro como gente: decente, coerente e irreverente perante os poderosos, seus esbirros e intermediários.
Fosse a história da Feitoria, que em 1975 se tornou República, algo como um conto de encantar, e eu seria, certamente, mais um manso e um sério candidato ao Reino dos Céus. Mas ela não é, nem pouco mais ou menos, parecida com a estória da Branca de Neve e dos Sete Anões; estará mais para a saga dos filhos da Negra de Azeviche com os Feitores vindos de Aquém Mar.
Longe da família (os ascendentes, a esposa e a prole ficavam, a maior parte das vezes, na Metrópole), o Feitor (personagem da saga) tem necessidade de garantir apoios e meios de defesa, precisa satisfazer as necessidades da carne e… fazer negócio.
O Feitor identifica, logo nos primeiros contactos, quem sempre se disponibiliza para ajudar e quem se balda à subserviência. Em um negócio montado tão longe de casa, a alma do negócio não é o segredo. Importa, antes de mais, fidelizar os colaboracionistas (arvorando-os em intermediários na domesticação dos demais) e segregá-los, física e mentalmente, dos resistentes.
Ao contrário da Branca de Neve, a Negra de Azeviche é obrigada a dar o corpo ao manifesto: carrega sacas, caixas e caixotes, durante o dia; à noite, deita-se com o bwana, ajudando-o a sublimar as saudades da legítima que, pela metrópole, se refastela com o cunhado play boy.
E o filhote do bwana com a Negra de Azeviche, sem necessidade de trabalhar (porque prover o sustento do lar é atribuição da fêmea) em playboyzinho de araque se transforma. La dolce vita: dormir de dia; tertúlias de esquina, ao cair da noite; queimar na night o dinheirinho suado que arranca da Negra de Azeviche (mãe, irmã, amásia e mercadoria). Quando as coisas apertam, e a situação ajuda, um servicinho como cicerone aqui, uma experienciazinha como proxeneta acolá; e quando a situação não colabora… o recurso à porrinha. Pudera! Há que financiar a night.
A necessidade de aculturação dos colaboracionistas é sentida de forma intensa. O Feitor, por essa altura, decidiu investir forte e feio na formatação de uma certa elite capaz de, a troco de muito pouco, garantir a intermediação no processo de dominação da massa que resistia à canga. Reza a lenda urbana que ele concentrou os seus mais fiéis apaniguados no andar de cima e que lhes disponibilizou um MICROFONE (um apetrecho aparentemente inócuo, mas que se revelaria de valia extraordinária na formatação do tipo de elite pretendido). Em off, ter-lhes-á garantido que tal instrumento lhes conferiria a qualidade de melhores filhos da Feitoria e que deles irradiaria a claridade bastante para iluminar e guiar os demais filhos de parida aqui e nas feitorias dos arredores.
Mas como é que UM simples microfone, ainda que ÚNICO, poderia fazer tanta diferença? Diz quem sabe que só se espanta quem não tenha tido a vivido a experiência de uma Roménia da era Nicolae Ceausesco: ter acesso a uma máquina de escrever ou a uma fotocopiadora era um privilégio reservado apenas aos homens que suportavam o regime. Porque um microfone, por sinal muito mais barulhento que a mais barulhenta máquina de escrever, não podia ser o símbolo que foi? Ficou tudo bem mais claro.
Pensando bem, uma mentira ciciada ao pé do ouvido é uma mentirinha… inofensiva; a mesma mentira repetida ao microfone soa a coisa cabeluda. De igual modo, uma grande verdade, veiculada através do boca-a-boca, não penetra, nem deixa mossa. A mesma verdade, dita ao microfone, atravessa montes e vales, cruza achadas e fajãs e, no processo de acrescentar um ponto a cada conto que se conta, acaba se tornando doutrina. Claramente uma delusão, mas, ainda assim, inquestionável para muito pobre de espírito.
Compreende-se, então, que a oferta do microfone pelo feitor fazia sentido. O microfone representava a capacidade de se fazer ouvir e um óptimo instrumento quanto a tarefa é catequizar. E se o microfone é único, então… é catequese one way garantida. Que é como quem diz MANIPULAÇÃO de certeza. E, de facto, durante muito tempo, os filhos da Negra de Azeviche do andar de cima foram uns privilegiados. Era a síndrome do microfone (primeiro e único) no seu auge.
Cedo, porém, os rapazes do andar de baixo se deram conta de que nem tudo que luz é ouro. Isto é, nem tudo que era apregoado pelo microfone era verdadeiro e libertador. Havia valores essenciais que seguiam sendo preteridos em favor de teses, princípios e valores do Feitor. Como acabar com isso? Como opor a garganta desarmada a um microfone ligado a um amplificador?
Mataram logo a charada. Só acedendo a outro microfone, claro. Mas viram-se logo confrontados com uma barreira aparentemente inultrapassável: era proibida a importação de microfones pelos nativos! Mas criativos como sempre foram, os vizinhos do andar de baixo fizeram-se presença quase que permanente no andar de cima. Confirmaram, então, que nem tudo que luzia era ouro; aprenderam que por lá se cultivava a máxima de que uma mentira mil vezes repetida se transformava em verdade; que os vizinhos afinal não eram donos das verdades que difundiam, nem dos secos e molhados que por lá se contrabandeava; e, principalmente, que o microfone era um instrumento tão poderoso que não podiam ficar sem, se, de facto, queriam ter um lugar ao sol. Isso porque o papel de intermediação da dominação a que os vizinhos de cima aderiram não lhes seduzia. Não era a praia deles.
Que fazer então? Da convivência com o pessoal do andar de cima tinham feito o primeiro contacto com o termo CONTRABANDO. Se se contrabandeava bacalhau, perfume, bebidas alcoólicas, tabaco em cigarros, etc., porque não se aventurar a contrabandear um microfone? Era um delito grave, mas a causa era nobre. Primeiro ensaiaram um processo de produção de ideias; depois organizaram um manifesto de afirmação de cidadania, inalienável e imprescritível; finalmente contrabandearam e instalaram um microfone com capacidade para produzir os decibéis necessários e suficientes para atingir toda a comunidade. Contrapor o NOVO microfone do país ao até então microfone ÚNICO ficaria para mais tarde. Mas, quando pretendiam apregoar aos quatro ventos a instalação dos necessários apetrechos de afirmação cidadã, eis que o Feitor se vê obrigado a deixar a Feitoria. Uma violenta reviravolta na Metrópole leva os Feitores a deixarem, em estado de petição de miséria, seus intermediários na dominação, suas concubinas e respectiva prole.
Os vizinhos do andar de baixo abriram fraternalmente os braços para receber os irmãos pródigos do andar de cima. Os vizinhos são para essas ocasiões, caramba.
Mas pau que nasce torto… Os vizinhos, soberbos e mal habituados, não conseguiam adaptar-se à nova situação. É aquela estória: uma vez intermediário, sempre intermediário! Aliás, como conceber uma ponte que não liga nada a coisa alguma? Zás! Da intermediação da dominação do Feitor para a intermediação do novo Poder foi um piscar de olhos. Estavam de novo como o diabo gosta: uma casta fechada, vivendo de privilégios e dedicando-se a explorar o legado cultural do finado Feitor. Em função do barulho do microfone (que ficou; oferta é oferta, caramba!) lá conseguiram que um deles, sentado à direita do novo dono do Poder, ficasse responsável pelos cordões da bolsa pública. Mais tarde, quando as coisas voltaram a tremelicar, mudaram de faixa e, novamente, conseguiram fazer um deles se sentar à direita do novíssimo dono do poder. E tornaram-se mais ousados. Não voltaram a colocar todos os ovos no mesmo cesto. Distribuíram-se estrategicamente pelos acessos ao Poder. De tal sorte que, em um novo reequilíbrio de forças, lá estavam eles, de novo, e desta feita, ladeando o novo e virtual dono do poder (não fosse o diabo tecê-las).
E foi então que os vizinhos de baixo desembrulharam os microfones (já não era apenas um) e se puseram a incentivar o pessoal com este altissonante grito de guerra: FAÇAM BARULHO!
Mas contrariamente aos vizinhos do andar de cima, a palavra de ordem não era no sentido de qualquer subjugação do semelhante, nem de conseguir favores do poder, mormente tomar nada de ninguém. O que, diga-se de passagem, se enquadraria perfeitamente em uma perspectiva de ressarcimento por danos suportados. Mas não. Não seria de cristão. Simplesmente se deixava claro que, de futuro, as coisas iriam mudar. Que o que é do homem o bicho não come (e se comer, descome; o que, convenha-se, é bem mais doloroso do que, simplesmente, cuspir); que o princípio de «UM HOMEM, UM VOTO» é para valer (o que significa que ninguém chega LÁ sem o beneplácito dos habitantes do populoso andar de baixo); que já chega de fingir que se dá o doce todo ao enteado, quando se sabe que este tem de dar metade a cada um dos meios-irmãos que o ladeiam (e a aritmética nos ensina que quem de um dá duas metades, só fica com a ilusão de que tem alguma coisa entre mãos).
É então que os vizinhos do andar de cima, irmãos que insistem em se considerarem especiais, com direitos a prerrogativas especiais e que não perdoam a História pelas partidas que acham que Ela lhes pregou, desatinam: que o microfone é assunto deles; que eles é que estão vocacionados para ditar regras; e que aí estava o passado como testemunha da sua supremacia. E desatam a procurar culpados. E como não os encontram (porque, simplesmente, inexistem) fazem que nem o homem de Santa Comba Dão (o tal que rotulou Cabral, Neto, Kalungano, e respectivos seguidores, como terroristas) e apontam o dedo a quantos tenham qualquer assomo de irreverência diante do passado «glorioso» de intermediação, entre os poderosos e os outros. Que fazer diante de um tal quadro?
Ora essa! Exactamente o que faria qualquer parente, com siso (avós, pais, tios, irmãos mais velhos ou mais moços), perante um miúdo mimado, com manias de grandeza e com um crónico desfasamento em relação à realidade: umas boas palmadas no traseiro e uma matrícula permanente no divã de um analista. A ver se aprende que se as coisas mudam, as pessoas também têm de mudar; que quando se começa a apostar em túneis, as pontes devem pôr as barbas de molho; que não adianta chorar sobre o leite derramado, porque isso não adianta nada, não tem volta. Enfim, dizer-lhe que cresça e apareça, pois as mistificações desfazem-se em pó, quando todos têm acesso ao conhecimento. E ao microfone!
Mas talvez nem tudo esteja perdido. Pode bem acontecer que, vencidas as manias, todos possam AINDA vir a viver JUNTOS e FELIZES para sempre.
Com MICROFONES PARA TODOS, hoje e sempre!

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