Tuesday, June 22, 2010

PLATAFORMA ELEITORAL

“Vamos ouvir especialistas e a partir dali elaborar o nosso programa de governação.” Jorge Santos

Quase uma vida inteira lendo, analisando, pesquisando, sobre a relação candidato/eleitorado, partidos/comunidades, deixou em mim a convicção (partilhada e reforçada na relação com pessoas que me são próximas) de que a primeira etapa da elaboração de um programa de governação deve ser política. O candidato visita as comunidades, estimula a leitura e a discussão dos dados da realidade, mas sob a óptica dos cidadãos, e traça um diagnóstico participativo. Esse processo de livre-pensar, de diálogo e de construção da visão de futuro da comunidade propicia o levantamento de muitas ideias. Depois de definido o sonho colectivo, o candidato pode (deve, mesmo) reunir uma equipe mais técnica, de profissionais, para analisar os aspectos jurídicos, financeiros e a viabilidade das acções e projectos capazes de atender às expectativas apresentadas pela população.

Em relação ao conteúdo, nunca tive dúvidas de que o que deve prevalecer é a razão política, com subsídios técnicos. É que o programa de governo não deve vender ilusões nem difundir a ideia de que tudo é possível. Ou seja, nas várias etapas de sua elaboração, o candidato pode se valer da competência técnica e da experiência de profissionais, mas todo o conteúdo tem que ser submetido à apreciação e estar subordinado à visão política da comunidade e de suas lideranças, sejam elas partidárias ou não. E o programa de governo, tem que ser simples e claro, para que a maioria do eleitorado possa visualizar com facilidade quatro coisas: o que será feito, como será feito, quando será feito e para qual público.

Para quem tenha bem arraigada um modus faciendi como o expendido atrás, difícil se torna compreender que um partido político deixe escapar para a imprensa que o eixo principal de elaboração de propostas para o eleitorado seja a visão do mundo que especialistas próximo do partido tenham. Levar especialistas a cada ilha, passar as ideias de alguns iluminados do partido pelo crivo dos técnicos, para depois as despejar sobre o eleitorado, parece-me um exemplo acabado do que não deve ser feito. Nesse modo de pensar, o eleitorado não é tido, nem achado. É tipo um saco vazio de ideias que pode ser preenchido com ideias de quem sabe e assumiu decidir sobre o futuro de todos. Alguém registou já que o que se diz que é feito para a comunidade, mas sem a participação da comunidade, só pode ser contra a comunidade. Pessoalmente, não «compraria» um programa de tal jaez. Nem pagaria para ver. Diante de uma tal acção de coisificação do eleitorado, a resposta só pode ser uma: voltar as costas ao proponente. Com uma tal atitude, de certeza que não se roubam os votos dos militantes do partido adversário, nem se captam os votos dos não militantes, correndo-se mesmo o risco de empurrar para a abstenção os militantes mais esclarecidos. Por estas e por outras, é que temos o nível da abstenção que temos.

A ideia de convidar especialistas para levar a cada ilha os temas que lhe são mais caros, em substituição de encontros dos políticos com as lideranças locais para auscultação das suas necessidades, sua contribuição para o programa, seus anseios e expectativas, nem parece coisa de político de um país com o percurso de Cabo Verde. Antes de mais, porque nada pode substituir o encontro, olho-no-olho, entre o candidato e o eleitorado; depois, porque essa «dos temas que lhe são mais caros», mais parece coisa de djabacoso: se a consulente é nova, fala-lhe de viagens, do amor, do namorado, do casamento, essas coisas; se de meia-idade, fala-lhe do marido, das amantes deste, da saúde dos filhos, etc; se estiver raiando a terceira idade, fala-lhe da saúde, da menina-moça que está dando em cima do marido, do filho embarcado. Na verdade, está-se nas tintas para a verdade e para o que as aflige. Fala-lhes do que do que acha que elas querem ouvir falar, dos temas que lhe são mais caros. Quer mesmo é ganhar o dele. Explorando a boa-fé e a bolsa das coitadas.

Os cabo-verdianos querem sentir-se fortemente atraídos entre duas propostas democráticas, consistentes e concisas. Propostas que contemplem o essencial das suas necessidades presentes e de suas expectativas em relação ao futuro. Os militantes sentir-se-iam deliciados se o seu partido tivesse uma plataforma eleitoral para ninguém botar defeito: o mais abrangente possível e, ao mesmo tempo, também redutível a poucas metas substantivas, factíveis, de forte apelo e de rápida compreensão popular. Facilitaria a sua acção junto da família, dos vizinhos, colegas do trabalhado, parceiros da bisca semanal e da confraria da cervejinha estupidamente gelada. Os não militantes deliciar-se-iam em dissecar as propostas, analisando seu grau de sinceridade e exequibilidade, questionando sua pertinência, buscando, enfim, razões para votar numa e deixar cair a outra.

No fundo, em cada campanha eleitoral, espera-se pela apoteose dos nossos políticos: que se excedam a si próprios, que ponham o futuro destas ilhas acima de tudo, que dêem o seu melhor, por amor à terra que os viu nascer, que desçam às fontes para recolher subsídios para a elaboração de suas propostas, que alimentem as nossas esperanças. E o que temos recebido, de facto? Promessas. Promessa de que vamos transformar mamonas em macieiras; que nos vamos transformar no Japão da África; que vamos construir centenas de túneis; que vamos crescer a dois dígitos; que vamos voltar a alimentar porcos a base de maçãs e a engordar gatos à base de gemada, esquecendo-se que hoje é tempo de canequinha. E que em tempo de canequinha, o mais importante é criar as bases necessárias para se sair do buraco. E programa bom é aquele feito pensando na gente, para a gente, com a gente, valorizando a gente, e claramente perceptível para a gente. Envolvendo técnicos, sim senhora; com a participação de especialistas, certamente; mas nunca, jamais, em tempo algum, obra de especialistas para consumo do comum dos mortais ou em que os especialistas substituem a comunidade no processo.

Porque ainda espero ver a apoteose dos nossos políticos no ano que vem, aqui fica o alerta. Que o goal keeper, se não quiser prejudicar a equipa, não volte a jogar a bola com as mãos fora da área de defesa da sua baliza. A não ser que esteja seguindo instruções do mister. Sendo o caso, já cá não está quem falou. Voltaria a minha atenção para o match Portugal/Brasil, a ver como se comportam os pupilos de Mister Queiroz.

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