Monday, November 19, 2007

A VIZINHANÇA, O VIZINHO E EU

“Um elefante, em qualquer local de trabalho, é um problema. Mas ninguém quer falar nele, pois de certeza que isso implica trabalho e dificuldades, para não falar do cheiro.”
Marianne M. Jennings

Havia muito tempo que não parava para pensar nos vizinhos, na vizinhança, nas relações impostas pela proximidade. Minha avó tinha uma máxima porreta que se farta e, orientando-me por ela, não me preocupava nada pela proximidade geográfica.
FAZ O BEM, NÃO OLHES A QUEM! – não se cansava Nhâ Mariazinha de repetir. E ela era coerente. Não me lembro dela frequentando a igreja, mas passava um tempão rezando.
- Porque é que a senhora reza tanto? – perguntei um dia.
- Rezo por ti, pelas tuas irmãs, pelos meus outros netos, pelo Caetano, pela Augusta, pela Lídia, e por aqueles que não sabem rezar e não têm quem por eles reze.
- Como assim? – quis saber.
- Rezo e largo. Vai servir a quantos precisem – explicou.
Uma filosofia de vida como a da minha avó marca para sempre. É assim que eu estou sempre disponível para o próximo, esteja ele onde estiver. E o próximo, para mim, é aquele que estiver na situação do desgraçado da parábola do BOM SAMARITANO. Não importando se é amigo ou inimigo, parceiro ou adversário, precisando e eu podendo ajudar, lá vou eu.
No entanto, houve momentos em que tive que para pensar ou repensar o conceito de vizinho e vizinhança. Numa das primeiras vezes que falei com a Zelinda Cohen, ela se reportou a mim, dizendo:
- Já o conhecia de cara. É meu vizinho.
Fiquei confuso. Eu estava morando no Platô e o Tó e a Zelinda num dos bairros novos do extremo Sul da cidade. Ainda pensei que talvez fosse por causa do sogro, o meu bom amigo senhor Filinto. Mas aí, interpretando bem a confusão que a minha face não conseguia esconder, explicitou:
- Somos vizinhos de página. No A SEMANA – completou.
Rimo-nos, é claro. Ele há cada vizinhança a considerar!
Mas foi interessante o que aquela situação despoletou em mim. E verifiquei, com espanto, que muitas das coisas que sei fazer, aprendi-as com vizinhos. Velhas, moças, colegas.
A primeira vez que comi uma gemada foi na casa de uma velha vizinha. Estava na terceira classe. Escrevi uma carta para a filha dela que estava cumprindo um contrato em São Tomé e Príncipe e ele me deu um ovo em pagamento. Era o meu primeiro pagamento por ter aprendido a escrever.
- É para fazeres uma gemada – sugeriu Nhâ Maria da Paz.
Ela foi perspicaz e logo entendeu que se eu já ouvira falar de gemada, com certeza não sabia ainda fazer uma.
- Vou te ensinar a fazer uma gemada – decidiu.
E gostei muito. E aprendi a fazer.
Li o meu primeiro livro sem imagens na casa de um vizinho muito especial. Meu tio Néné di Nhâ Pomba. Já não me lembro do título. Mas falava da fundação da Califórnia, ou a minha memória já me começa a pregar partidas. E muitos outros livros li ali, naquela biblioteca improvisada, paredes-meias com a marcenaria do meu tio.
Conheci, e aprendi a respeitar, usos e costumes do interior de Santiago e das ilhas. Aprendi a conviver com o diferente, com o que não percebia muito bem. Aprendi a dizer que estava farto quando me pediam para comer algo que não conhecia ou de que não gostava. Aprendi a jogar às cartas. A jogar damas e ouril. E a apostar no sete-e-meio, no nove, no vinte-e-um e no trinta-e-um.
Nasci e cresci na Travessa, um lugar sobranceiro e à parte, na Vila Nova. E na Vila Nova se aprende de um tudo.
E quantas asneiras não aprendi fora de casa, na vizinhança? Quase todas.
O vizinho é o teu familiar mais chegado – dizia minha avó. Diante do meu ar de incompreensão, explicava: se te acontecer alguma coisa, e antes que a família possa chegar, tens aí um vizinho te socorrendo. Fantástico. Entendi. E nunca mais esqueci. E hoje repito os mesmos conselhos.
Mas hoje a vizinhança e o vizinho são realidades bem mais complexas. Estamos todos fechadinhos na nossa concha. A televisão não nos dá uma aberta para escutar as estórias da avó do nosso amiguinho. Os avós moram a quilómetro, quando não quilómetros, de distância. E as estorinhas vão caindo no esquecimento.
Pessoalmente, e apesar dos pesares, ainda acho o vizinho um parceiro importante. E quanto menos vizinhos, mais importantes se tornam. E, nos dias que correm, são exactamente como os familiares: a gente não os escolhe; encontramo-nos na vida, estamos muito pertos um do outro, e não há como nos desvencilharmos um do outro sem mágoas. Bem diferente de amigos. Que esses, a gente escolhe. E, ao contrário dos vizinhos, não escolhemos um qualquer como amigo. E não nos aceitam só porque estamos por perto. Amigos, como diz o outro, a gente guarda do lado esquerdo do peito. Vizinhos têm confrontação connosco: pelo Norte, pelo Sul, pelo Leste ou pelo Poente; no andar de cima, na porta ao lado ou no andar de baixo. Na página ao lado, numa qualquer página de um número de um jornal ou revista, também.
Como em tudo na vida, há vizinhos de que a gente gosta e há-os que a gente abomina.
Gostei de ter Nhâ Maria da Paz, Chico de Maria, Tói Serra, José Manaia, Nhâ Maria Sábo e muitos outros como vizinhos de proximidade na minha infância; adoro poder contar com o senhor João (melhoras, João) e dona Aldina como vizinhos; sinto um certo orgulho em ter tido a Zelinda como vizinha de página; gostaria de poder ter o Oscar Santos como vizinho de página; honra-me a vizinhança do velho Firmo Pinto e do jovem Baluka Brazão.
Mas detesto certas vizinhanças e determinados vizinhos. Não sou santo. Nunca fui e espero não vir a ser. Ou deixava de ser o vosso amigo LUDGERO. Suporto-os porque cultivo a tolerância e o respeito pelas diferenças e pelo diferente. Mas confesso que me custa.
A minha sorte é que tenho uma belíssima vizinhança de proximidade. Moradores, comerciantes, profissionais liberais que são um verdadeiro must. Classe A. Desses não pretendo me afastar nunca mais. Da minha parte, só penso fazer mais uma mudança de residência. A definitiva. Para a Cidadela dos Pés juntos. E oro para que os meus vizinhos continuem pela Rua da Horta (Miguel Bombarda, Justino Lopes, ou como a quiserem chamar no futuro) até ao fim dos tempos.
Em relação às outras vizinhanças, e se deles quiser, de facto, distância, valerá o ditado «O INCOMODADO QUE SE RETIRE». E eu me confesso «O INCOMODADO». Só que… retirar-me seria fugir (mais uma vez) da sede onde se travam as batalhas. Primeiro fugi das lutas políticas, invocando a fragilidade do meu estômago e a hipersensibilidade do meu nariz. E agora estou inventando e somando razões para voltar as costas à luta pela cidadania. Seria uma cobardia sem nome. Não apenas pelo facto de voltar às costas à luta (que isso seria de somenos, já que outros valores mais altos se levantariam, cobrindo, com vantagem, o espaço deixado vago), nem porque estaria dando alegria para o outro lado, mas porque estaria encorajando e dando mais força ao vizinho desafecto. E isso seria mau. Muito mau. É que, rompido o equilíbrio, se o mau vizinho ficar na mó de cima, a vizinhança ficaria pior. Para todos. E eu me sentiria culpado. Por não ter feito valer os meus argumentos.
Espero não vir a ter de fugir. Vou combinar com o meu síndico uma modalidade de coexistência pacífica. Vou dizer-lhe que só ocuparei o meu espaço quando o espaço do vizinho que me incomoda estiver vazio, e que, para tanto, agradecer-lhe-ia imenso que me mantivesse informado acerca das idas e vindas do indesejado, prevenindo, assim, qualquer acidental proximidade. Que não é treta minha, não senhor. Tenho, de facto, o estômago muito fraco. E tenho de o poupar. Não concordam?

1 comment:

Maria said...

Minha mãe, dizia as mesmas coisas que sua avó.....Bom costumamos dizer que mães são todas iguais, só mudam de endereço...