Thursday, June 21, 2007

COMUNICAÇÃO FEITA POR OCASIÃO DO ANIVERSÁRIO DA POLÍCIA DE ORDEM PÚBLICA

POLÍCIA E A URBE*
- O ontem, o hoje e o amanhã -

Pediram-me que abordasse o tema “UMA POLÍCIA PARA O FUTURO / A POLÍCIA E A URBE”.
Vou falar do mesmo que falaria se seguisse o título proposto, mas prefiro que o título abarque (a) o histórico da função policial, (b) um ponto da situação da relação que HOJE a POP mantém com a Cidade e (c) a projecção do que se espera sejam as relações futuras entre a POP e as comunidades urbanas.
Em intervenções do género desta, uma retrospectiva história é sempre desejável. Desejável porque ajuda a compreender a origem das coisas. Desejável também porque permite fazer um balanço dos desvios e acertos e desejável, principalmente, porque propicia oportunidades para um correcto equacionamento do futuro.

A HISTÓRIA
Vêm a talho de foice estas questões:

“QUEM É MAIS ANTIGA: A POLÍCIA-CORPORAÇÃO OU A POLÍCIA-FUNÇÃO?” “E O QUE VEM A SER, AFINAL, A POLÍCIA”?

Originariamente, a polícia era o conjunto de funções necessárias ao funcionamento e à conservação da cidade-Estado (polis grega, daí a etimologia de polícia e civita romana, daí civil, isto é, inerente à civita - cidade).
Quando as pessoas começaram a se sedentarizar, agrupando-se em núcleos permanentes, rodeados pelos seus pertences e haveres, cedo surgiu a necessidade de algumas regras. Estabelecidas as regras, necessário se tornou um ente que fizesse com que os vizinhos respeitassem as regras, se respeitassem e respeitassem as propriedades uns dos outros. É aí que nasce o Estado. Com efeito, a protecção do indivíduo ou do grupo contra qualquer violência à sua pessoa, a seus bens ou a seus direitos, enfim a segurança pública, sempre foi uma das razões fundantes do Estado. E a função polícia foi das primeiras funções estatais.
A função policial nasce, pois, com as cidades, de quem, aliás, ganham o apelido. Polícia vem de polis, que em grego significa cidade.
Sem o policiamento (entendido como o exercício da função de polícia) a organização social “cidade” não sobreviveria.
Na origem e na essência, policiar é civilizar, porquanto a vida civilizada (vida na civita, em comunidade) implicava e implica em refreamentos do que não é civilizado, do que não é urbanidade (civita e urb, são raízes latinas para a ideia de virtude).
Faço aqui a distinção entre a polícia-função e a polícia-corporação porque uma coisa antecede a outra e nem sempre os responsáveis pelo policiamento foram chamados de policiais.
Veja-se o caso português (a que voltaremos, por razões óbvias). No século XIV D. Fernando editava as primeiras leis sobre a organização, nomeação e atribuições dos titulares da função de policiamento das urbes. Eram designados QUADRILHEIROS e assim foram chamados até 1755.
O terramoto de Lisboa de 1º de Novembro de 1755 veio pôr a nu as fragilidades de que enfermava a organização dos Quadrilheiros. É a primeira vez que na história de Portugal (um pouco nossa também) aparece o termo POLÍCIA designando não uma função, mas uma corporação. Porém, a organização só viria a conhecer uma fase boa com PINA MANIQUE, a quem D. Maria I nomeou Intendente, confiando-lhe os destinos da polícia.
Com o Marquês de Pombal a polícia tinha sido desviada das suas atribuições, tendo sido utilizada mais com objectivos políticos do que de segurança social.

O PRESENTE

O dilema fundamental era (e ainda é) pelo menos, em tese: liberdade sem segurança ou segurança sem liberdade.

Tal era o peso da responsabilidade herdada por PINA MANIQUE.

Mas o desafio perante o qual se encontram nossos Comandantes e Oficiais é este: liberdade em segurança e segurança sem restrição da liberdade.

Aqui a questão-chave é:

que fazer para controlar a selvajaria da criminalidade, da violência e da corrupção que tende a se generalizar e que nos assusta a todos, e ao mesmo tempo garantir a segurança sem bulir com as liberdades individuais?

Poder de polícia é conceito jurídico atinente à adequação da rivalidade existente no binómio indivíduo/grupos versus público/social, ou seja, é o poder que garante a compatibilidade necessária entre os direitos do indivíduo ou de grupos e os interesses e direitos da colectividade. Enfim, o poder de polícia é a essência característica do Estado que veio civilizar a vida selvagem anterior do homem. Por isso, polícia é, então, a organização administrativa (vale dizer da polis, da civita, do Estado=sociedade politicamente organizada) que tem por atribuição conformar a liberdade individual ou de grupos aos interesses e direitos da colectividade, podendo recorrer ao uso da força, mas na (exacta) medida necessária para a salvaguarda e a manutenção da ordem pública. Aqui o desafio é a medida da força para a limitação das liberdades individuais. Tem que ser na medida justa e exacta da necessidade de salvaguardar a ordem pública: qualquer excesso configuraria uma situação de abuso.

A questão da polícia na urbe, pode até ser posta nestes termos:

não há cidade sem polícia. Um agrupamento populacional pode ter tudo o que precisar, mas se não tiver quem exerça o poder policial (uma força policial) não pode ser catalogada como cidade.

De igual modo, não existiria razão para alguém inventar a polícia não fosse a sedentarização e a emergência de urbes.

Isso dito, como se poderá interpretar o que se passa na cidade da Praia, capital da República de Cabo Verde. Aqui cada um faz o que bem entende. E assim, das duas uma. Ou não é cidade (no que a Constituição nos desmente) ou os titulares dos poderes de polícia não têm o mandato que se esperava tivessem: o de policiar e civilizar, porquanto a vida civilizada (vida na civita, em comunidade) implica em refreamentos do que não é civilizado, do que não é urbanidade (civita e urb, são raízes latinas para a ideia de virtude). E não é o que se vê. Não é o que se sente.
Ainda me ressoa na memória esta modinha:

polícia / associal / bá timbora / bá timborinha.

Como foi possível chegar-se ao extremo de os cidadãos (que exigiram que o Estado encontrasse um modo de os proteger e aos seus bens) se levantassem contra a polícia (a mão que o Estado lhes estendeu)?
Os policiais – mais do que a polícia – precisam estar atentos aos fenómenos que se manifestam à sua volta. A sua actividade está sujeita ao interesse e exigência da sociedade para cuja protecção estão vocacionados.
E essa atenção – que cada vez mais se posiciona criticamente acerca do desempenho das forças de segurança, que parte para a denúncia de irregularidades – essa atenção, dizia, deve ser entendida como sintoma de uma sociedade livre e civilizada, onde as pessoas esperam mais e melhor da sua polícia, exigindo qualidade e profissionalismo.
Mas tais vozes, atentas e críticas, são também solidárias. Estão dispostas a conferir empowerman à sua polícia para que esta não esmoreça na sua digna e espinhosa missão de civilizar as relações na cidade.
E é bom que os policiais (e a polícia-corporação também) saibam que os cidadãos criticam porque sabem que os nossos policiais são capazes de mais e de melhor. As questões a pôr são, pois, estas

“O QUE TOLHE A POLÍCIA?”
O que vai vai mal nesta relação?

Vejamos o que os cidadãos mais têm reclamado da sua polícia:

1) Que ela se mostre capaz de garantir a manutenção da ordem, da segurança e da tranquilidade públicas;

2) Que ela se mostre capaz de garantir a segurança das pessoas e de seus bens;

3) Que ela se disponibilize para liderar um processo de formação e informação em matéria de segurança dos cidadãos, fazendo de cada cidadão um parceiro na luta pelo reforço da segurança e contra a expansão da criminalidade.

4) Que ela se mostre decidida a criar e a manter as condições de segurança que assegurem o normal funcionamento das instituições democráticas.

De facto, os cidadãos não estão a ser demasiado exigentes. Pedem hoje o que pediram no princípio dos tempos, quando resolveram se sedentarizar e viver segundo regras. Qual então a dificuldade?
A mim me parece estar-se perante um enorme deficit de diálogo, potenciado por uma crónica carência de recursos.
Os cidadãos estão querendo cada vez mais (e estão no seu direito); o Governo promete muito e não dá tanto; a polícia continua contando tostões para tudo: para fardamento, para combustível, para equipamentos. E é o stress gerado por esta incapacidade de satisfação das demandas que vai minando umas relações que deveriam ser de parceria e tendem a se transformar em confrontamento.
Vejamos as reclamações dos cidadãos:

a) Os cidadãos reclamam o regresso do policiamento ostensivo;

b) Os cidadãos reclamam do descaso dos piquetes quando solicitados (seja presencialmente, seja via telefone);

c) Os cidadãos reclamam de alguma localizada arrogância na relação agentes/cidadãos;

d) Os cidadãos reclamam de alguma permissividade em relação a determinados grupos sociais, o que poderá indiciar falta de brio profissional.

No fundo, os cidadãos não querem mal aos seus policiais. Antes pelo contrário. Quere-los mais pertos. Se não, vejamos:

(i) querem mais policiamento ostensivo (ou seja o policial mais perto dos cidadãos);

(ii) querem um piquete mais humanizado (porque acha que são as pessoas mais vocacionadas para os socorrer em momentos de aflição, o que não deixa de ser uma manifestação de confiança);


(iii) quere-los briosos (E longe da boca do mundo), porque um desvio ético de um conspurcaria A todos, indiscriminadamente – os homens de azul);


Descobrimos aqui mais uma questão-chave:

“Porque não dar aos cidadãos o policiamento ostensivo por que tanto anseiam?”
Eu acredito que isso mudava tudo. Abrir-se-iam as portas para uma nova (e mais sã) convivência.

O FUTURO
O ponto da situação que ensaiamos atrás mostra-nos uma relação simples que se tornou difícil por razões facilmente ultrapassáveis. O futuro pode e deve ser melhor do que o presente.

COMO, ENTÃO, EQUACIONAR O FUTURO DAS RELAÇÕES POLÍCIA/COMUNIDADES?
Quando se abraça o desafio de equacionar o futuro, há três aspectos que têm que ficar claramente estabelecidos:

(1) quem somos; (2) onde estamos; (3) e para onde vamos.

O primeiro aspecto está devidamente esclarecido: a polícia é o garante da civilização; é o factor que transformou aglomerações humanas na realidade económica e social que hoje se denomina “cidade”; tem um casamento de interesses com a cidade (não há cidades sem polícia e, muito provavelmente, não haveria polícia não fosse o surgimento das polis).
O segundo aspecto também não oferece grandes problemas. Vive-se a complicação de umas relações que eram para ser simples (porque naturais), mas o ponto da situação feito dá-nos a exacta medida de “onde estamos”.
Em relação ao terceiro aspecto cumprirá estabelecer o que queremos que sejam as futuras relações da polícia com as comunidades (ou as urbes se preferirem). Para onde vamos?
O apelo ao policiamento ostensivo; o desejo de ter a polícia por perto; a vontade manifestada de participar na luta por uma maior segurança e por uma menor taxa de criminalidade; tudo isso parece apontar como solução uma maior aproximação da polícia às comunidades e vice-versa. A solução poderá ser abraçar o que nos meios policiais hodiernos se denomina de policiamento de proximidade.
Existem actualmente muitos conceitos ou definições de policiamento de proximidade. Embora as expressões sejam diferentes, a filosofia e os conceitos em que se baseiam são praticamente iguais em todos os países em que este tipo de policiamento tem sido implementado.
A definição seguinte é aquela que me parece a mais compreensível tendo em conta o que é pretendido que sejam as relações futuras com as comunidades:

O policiamento comunitário é, na essência, a colaboração entre a comunidade e a Polícia, com o objectivo de identificar e resolver os problemas da comunidade, Deixando a Polícia de ser a única guardiã da lei e da ordem e tRANSFORMANDO-SE TOdos os membros da comunidade EM elementos activos no esforço conjunto para melhorar a segurança e a qualidade de vida.

As implicações nas relações POLÍCIA/COMUNIDADE são, contudo, bem mais vastas: propicia uma visão mais ampla da prevenção e controlo da criminalidade; confere uma ênfase maior à participação activa dos cidadãos no processo de resolução de problemas e exige profundas alterações na organização policial.
Neste tipo de relação, o principal papel do agente policial, apoiado pela estrutura policial, passa a ser ajudar os cidadãos e as entidades que integram a comunidade a mobilizar os apoios e a obter os recursos necessários à resolução dos problemas e à melhoria da sua qualidade de vida. Os membros da comunidade transmitem aos agentes as suas preocupações, derrubando as barreiras da apatia e da desconfiança, a modos enformar parcerias estáveis e empenhadas.
O sucesso da estratégia de policiamento comunitário baseia-se em laços fortes e mutuamente vantajosos entra a polícia e os cidadãos da comunidade em pauta.

O policiamento comunitário consiste em duas componentes complementares: uma parceria comunitária e um processo de resolução de problemas.
Para desenvolver uma parceria comunitária a polícia deve criar um conjunto de relações positivas com a comunidade, envolvê-la na sua luta para prevenir e controlar a criminalidade e juntar os seus recursos aos da comunidade para fazer face às preocupações mais urgentes dos cidadãos. A resolução de problemas é o processo através do qual algumas das preocupações específicas da comunidade são identificadas e resolvidas através de medidas estudadas e concertadas. E isso reforça os laços.
E não há que recear qualquer perda de autoridade ou redução da importância das missões da polícia. Antes pelo contrário. As entidades públicas locais, os serviços sociais, escolas, entidades religiosas, comerciantes, enfim, as forças vivas (i.e., todos aqueles que vivem e trabalham na comunidade e têm interesse na sua segurança e estabilidade) disponibilizando as capacidades e recursos existentes no seio da comunidade e participando da responsabilidade de encontrar soluções viáveis para os problemas que se colocam para a segurança e bem estar da comunidade, libertarão a polícia de muitos dos seus encargos, permitindo-lhe assim maior cobertura territorial e maior capacidade de intervenção.
O objectivo do policiamento comunitário é a redução da criminalidade e manutenção da ordem através de uma análise pormenorizada das características e origens de determinados problemas que se colocam a uma comunidade, resolvê-los através do recurso às soluções mais adequadas.
Um par de questões obrigatórias, neste momento:

É ISSO QUE QUEREMOS? É PARA AÍ QUE QUEREMOS CAMINHAR?
Se estivermos de acordo quanto à nossa identidade, quanto à situação em que nos encontramos e sobre o futuro que queremos para as nossas relações com as urbes, só nos resta identificar umas quantas certezas que nos aproximam e montar as estratégias, definir as metas e partir para a operacionalização de umas e outras.

Façamos, então, um levantamento das certezas:
1. QUE é mister um sistema nacional de segurança pública bem fundado e forte, livre de corporativismos prejudiciais e sem tentações de se imiscuir em questões políticas ou de outra índole que desviem a polícia da sua função precípua;
2. QUE é mister apostar em um sistema de educação/cultura, orientado e guiado por valores e princípios virtuosos/dignos, para que se possa alcançar a sociedade que queremos, merecemos e temos condições para começar construir, JÁ HOJE;
3. “QUE É MAIS FÁCIL, MAIS ÚTIL E MAIS ECONÓMICO PREVENIR DO QUE REPRIMIR, Beccaria dixit (1775), e que isso é tarefa mais dos Ministérios da Economia, do Planeamento, da Saúde, da Educação (emprego, saúde e educação são fatores essencialmente anticriminogénicos) do que da Polícia ou dos Ministérios da Justiça ou da Administração Interna;
4. QUE a Sociedade Civil está aberta, atenta e expectante e quer estebelecer parcerias com a Polícia para a construção da sociedade que queremos e merecemos.

VAMOS COMEÇAR? HOJE? AGORA?

* Comunicação apresentada na escola de Polícia “Daniel Monteiro”, em 2004, integrado nas comemorações de mais um aniversário da POP – Polícia de Ordem Pública.

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