Monday, October 15, 2007

CRESCEMOS A DOIS DÍGITOS. E DAÍ???

Lembro-me amiúde do filho da amiga da comadre da minha mãe. O Zé, de Rui Vaz. Aqui ao lado.
O Zé tinha vindo fazer o exame do 2º grau aqui na Praia. Tendo sido aprovado, entendeu minha avó que uma boa prenda poderia ser levá-lo ao Djessa Mello para que fosse fotografado e levasse para casa quatro fotos tipo passe, que poderiam ser de muita utilidade. Era uma prenda relativamente barata, mas muito prática.
Pena que a minha avó não era bruxa. Que, se fosse, teria adivinhado que o Zé morria de medo de tirar retrato. Depois de vários apelos, não houve maneira de tirar o Zé de dentro de casa para ir ao fotógrafo. Ora alegava «barriga-baixo», ora era a fivela da sandália, faltava passar o pente mais uma vez pelos cabelos. Enfim, um arsenal de artifícios que a gente foi levando como coisas de rapaz novo ratolco. Até que chegou a irmã, a Judite, que nos confidenciou que o mano – rapaz que, na luta, derrubava todos os mancebos da localidade e arredores – morria de medo de tirar retrato. E pediu-nos, por todos os santos, que não deixássemos que o José soubesse que tinha sido ela a dar com a língua nos dentes.
Mas lá conseguimos, com a prestimosa ajuda do senhor Djessa, expor o Zé à máquina fotográfica. «Já está, rapaz» – anunciou o senhor Djessa. «Mas como? Nem doeu, nem nada!» – exclamou Zé, passando em revista a cabeça, o tronco e os membros, à busca de um beliscão qualquer. «Pois não dói. Esperavas o quê?» – interessou-se o fotógrafo. «Qualquer coisa. Alguma mudança. Sei lá» – atirou Zé, desconfiado.
O espanto do Zé era autêntico. Nos quinze minutos que durou o trajecto de volta – da ponta Norte da Avenida de Sá da Bandeira até à Vila Nova – não passou um em que ele não testasse uma parte do seu corpo, a ver se estava tudo bem.

Lembrei-me da estória do Zé, desta feita, ao pensar na estupefacção que deve ter assolado os meus concidadãos ao tomarem conhecimento do facto de, no ano passado, o PIB do país ter acumulado um crescimento de dois dígitos. «Mas como? Nem doeu, nem nada!» - deverão ter-se perguntado, uns. Outros terão dado de ombros e soltado um desdenhoso «E daí?».
E daí? E daí, nada. Parabéns pelo resultado, talvez. Mas como sempre se fez questão de frisar, o crescimento a dois dígitos não pode ser uma finalidade em si. A um, a dois ou a três dígitos – que sei eu?! – o que importará será sempre o impacto que o crescimento possa ter na nossa vida: no emprego, na saúde, na educação, no rendimento dos trabalhadores, nos equipamentos sociais urbanos, nas infra-estruturas económicas, na qualidade de vida. Se não há mais nem melhores empregos; melhores cuidados de saúde, mais e melhores meios auxiliares de diagnóstico, maior comparticipação do estado no custo dos medicamentos para tratamento de doenças crónicas (v.g. hipertensão, diabetes, câncer, epilepsia, etc.); mais e melhores opções de formação, um nível de ensino verdadeiramente gratuito, rigor em relação ao ensino dito obrigatório, generalização do pré-escolar, etc.; um salário mínimo calculado na base do custo de uma cesta básica (o mínimo para uma família poder comer, ao menos, duas vezes por dia, todos os dias do mês); os equipamentos e as infra-estruturas indispensáveis a uma boa qualidade de vida e à sustentabilidade do padrão de crescimento atingido; se o trabalhador não sente nada disso – se não «doer» – afinal, o crescimento a um, dois ou três dígitos, vêm a dar no mesmo. É tudo igual ao litro. O medo do Zé (de Rui Vaz, filho da amiga da comadre de minha mãe) e as crenças do outro Zé (nosso Primeiro Ministro) vêm a dar no mesmo: não doem, nem tiram pedaço. Ninguém sente.
O Zé (de Rui Vaz) andou da Praia para Vila Nova e depois da Vila Nova até Rui Vaz, inspeccionando-se todo, verificando-se vezes sem conta, e… nada. Continuava virgem, como quando tinha entrado no atelier do senhor Djessa. Não sentiu alteração nenhuma na sua vida, na sua rotina, no seu bolso. A não ser que era dono de quatro fotografias tipo passe, pagos por Nhâ Mariazinha.
O cabo-verdiano (sem renda, baixa renda, classe média, classe média alta) comemorou o nascimento de Cristo, a Passagem de Ano e os Reis, Santo Amaro Abade, São Vicente e Santíssimo Nome, o Carnaval, as Cinzas e a Páscoa da Ressurreição, a Santíssima Trindade, São Salvador do Mundo e São Jorge, São João, São Pedro e São Paulo, São Tiago Maior, São Lourenço, Nossa Senhora da Graça e São Roque, Nossa Senhora da Luz, da mesmíssima forma. Como quando o país crescera apenas a um digitozinho. E agora, por ocasião de Santa Teresinha, vêm-lhe dizer que as festas por cada uma das datas referidas poderiam, e deveriam, ter sido bem melhores, porque o PIB cresceu quase 11%.
Será que as festas de Todos os Santos (1º de Novembro), de Nhâ Santa Catarina (25 de Novembro), Imaculada Conceição (08 de Dezembro), Natal e Ano Novo serão mais rijas, por conta do crescimento a dois dígitos conseguido no ano passado? Será desta que os servidores do Estado vão ganhar direito ao tão desejado 13º salário? Vai haver alguma actualização salarial por conta do crescimento a dois dígitos? Os medicamentos para os doentes crónicos vão poder ser comparticipados pelo Estado? O ensino gratuito vai passar a ser mesmo gratuito? O estado já está em condições de compelir os pais a levarem os filhos para a escola, cumprindo os ditames do ensino obrigatório? No curto prazo, onde vai «doer» ao cidadão nacional?
O facto de só “sentirmos que crescemos” a dois dígitos, dez meses depois de “termos crescido”, já é, de per si, sintomático. Soa ao velho Djessa dizendo ao jovem Zé (de Rui Vaz) «Já está, rapaz». Não doeu. Não tirou pedaço. Nem acrescentou nada. A não ser uns prints do INE e do FMI (o BCV falou alguma coisa?), tal qual as fotos 4x4 que o Zé levou nos bolsos quando regressou a Rui Vaz. Se virgens estivéssemos, virgens chegaríamos ao altar, dependendo do impacto imediato do crescimento a dois dígitos.

Mas que foi bom que agora, nesta fase da Legislatura, se tenha chegado a um tal resultado, foi.
Antes de mais, porque o Governo vai entender que o palavreado que não leva nada para a panela do trabalhador, nem debela as dores do sofredor, deve ser usado com parcimónia. Quando começarem as cobranças (tipo «crescemos 11%, e daí?») o gerúndio não chegará para acalmar a ira desencadeada. Talvez vá sendo o caso do povão baixar uma liminar proibindo o gerúndio nos discursos justificativos dos detentores do poder.
Depois, porque o Governo vai ver-se e desejar-se para atingir a fasquia colocada em relação ao crescimento do decorrente ano económico. Não vai chegar lá. As correcções que conduziram ao resultado que ora se festeja, vão jogar contra as metas deste ano. Alguém quer pagar para ver?
Mas terá sido bom principalmente se os políticos entenderem que a aposta tem que ser no desenvolvimento (desenvolvimento aqui entendido como processo histórico que é, a um tempo, causa e consequência de um harmonioso crescimento económico, de substancial melhoria da qualidade de vida, da salvaguarda do ambiente, da boa governação e de elevados padrões éticos na gestão da coisa pública). À criação da riqueza deve-se aliar um coerente e eficaz mecanismo de redistribuição da mesma; a qualidade de vida deve ser erigida em FINALIDADE de toda a acção do Estado; a salvaguarda do ambiente deve ser considerada como a garantia da sustentabilidade do desenvolvimento e da preservação da qualidade de vida; a boa governação tem de ser integrada na cultura do poder como elemento estruturante; a ética terá de ser um princípio insofismável e de valor absoluto (nem a ética do faz-de-conta, nem éticas particulares ou privativas, nem mais ou menos ético) e tão estruturante da cultura quanto a boa governação que, de facto, não existe quando a ética está ou entra de férias. É isso que interessa realizar.
Não importará quanto possa crescer a nossa economia se tivermos sempre presente o que é essencial e o que é acessório e se formos capazes de distinguir uma coisa da outra. O resto… é o resto.
No passado convenceram-nos que a estiagem era a responsável por todos os nossos problemas. Hoje, consciente ou inconscientemente, procura-se convencer-nos que só o crescimento importa. Mas as coisas não se passam assim, de forma tão simplista. O que falta nesses raciocínios com que nos brindam é algum rigor, digamos, matemático.
A estiagem complicou? Complicou e segue complicando. A estiagem pode ser (e certamente foi) a condição necessária para que o nosso povo tivesse passado pelas privações por que passou no passado (passe a redundância). Mas – há de se perguntar – porque não provoca os mesmos danos agora? A estiagem foi a condição necessária, mas não teria sido jamais suficiente para, só por si, causar os danos que causou. Tivesse a metrópole tomado as devidas providências…
O crescimento a dois dígitos ajuda ao desenvolvimento? Claro que ajuda. Diria que o crescimento (não importa quanto se tenha crescido, à condição de que seja de forma sustentada) é factor absolutamente necessário ao desenvolvimento. Mas será suficiente? Crescer igual a desenvolver? Não. Pode-se ter boa qualidade de vida (e tudo o resto que identificamos atrás como indicadores de desenvolvimento), com modestas taxas de crescimento. E acontece não se atingirem bons níveis em nenhum dos indicadores, apesar de boas taxas de crescimento. Resulta, pois, que o crescimento é condição necessária, mas não é suficiente.
Sugiro que a gente recorra regularmente ao enunciado dos Teoremas que a gente aprende na Matemática para que se possa identificar com algum rigor o que é necessário e suficiente, em cada momento, para se atingir o resultado pretendido. Por exemplo: É CONDIÇÃO NECESSÁRIA E SUFICIENTE PARA QUE UMA FIGURA GEOMÉTRICA SEJA UM QUADRADO, QUE TENHA QUATRO LADOS IGUAIS, FORMANDO, ENTRE SI, ÂNGULOS DE 90 GRAUS. Quatro lados iguais podem configurar um quadrado (como na ALA DOS NAMORADOS, em Aljubarrota), é certo; mas configuram, também, um losango (como na estrutura do meio-campo do SPORTING de PAULO BENTO). A diferença reside nos ângulos rectos do Quadrado (mas que, de per si, não definiriam nada, já que no Rectângulo, por exemplo, também todos os ângulos são de 90º).
Ficamos, pois, em que uma boa taxa de crescimento pode até ser coisa boa, mas que só «doerá» se houver algo mais. Algo que possa transformar o crescimento em mais e melhores empregos, mais e melhor saúde, mais e melhor educação, mais rendimento para o trabalhador, mais e melhores equipamentos sociais urbanos, mais e melhores infra-estruturas económicas e, sobretudo, mais e melhor qualidade de vida.
Se não… será sempre como ir ao Djessa tirar um retrato. E daí?

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