Tuesday, June 9, 2009

O DIREITO DE RECLAMAR

“Por vezes, quando reflicto sobre as tremendas consequências que resultam das pequenas coisas… Fico tentado a pensar… que não há pequenas coisas.

Bruce Barton
Há que saudar o (r)estabelecido direito de reclamar. Se antes não nos ouviam, ou ouviam e faziam ouvidos de mercador, hoje já se pode apelar para o LIVRO DE RECLAMAÇÕES e aí registar as nossas reclamações.
Mas esse direito resgatado, em vez de nos tranquilizar, faz-nos mergulhar num mar de cogitações. O livro deve estar visível e/ou acessível ou a gente tem de pedir ao responsável? Se o responsável se recusar a apresentar o livro, o que é a gente faz? A quem a gente recorre? O responsável pode proibir-nos de entrar no seu estabelecimento em razão das nossas reclamações? Qual o ente público com poderes para fazer valer os nossos direitos? E se o ente público a quem a gente recorrer não nos atender ou nos atender mal e porcamente?
Aliás, quando é um ente público responsável pela provisão de algum serviço que se torna alvo das nossas reclamações, o que podemos fazer? Haverá um livro de reclamações nos escritórios de tais entes, à semelhança do privado? Ou ali serão as decorativas caixas de reclamações, as tais que ninguém abre?
Não estranhem as nossas dúvidas. Elas alicerçam-se em desilusões várias que medraram em uma cultura onde um mundo de direitos não conhecem tradução prática e tudo fica por isso mesmo. Direitos consagrados até constitucionalmente e que, em não sendo respeitados, o cidadão não tem para onde se virar; e ditames, também constitucionais, de que os titulares dos poderes fazem letra morta.
Dos tais direitos consagrados não vou aqui falar, já que cada um de nós é capaz de recitar uma dezena delas sem gaguejar. Dos ditames constitucionais feitos letra morta, o exemplo mais gritante é o estatuto administrativo especial outorgado pela CR à Cidade Capital da República e que tem sido feito de bombo da festa, tanto pela situação como pela oposição. É claro que responsabilidades maiores devem ser assacadas aos parlamentares; embora o Governo tenha a sua quota-parte, uma vez que quando decide, de per si, mudar o estatuto de uma urbe (de vila para cidade, por exemplo), fá-lo no estilo vapt-vupt, não acontecendo o mesmo quando se trata de um ditame da Constituição da República. Num caso desses, a quem a gente pede o Livro de Reclamações? Onde estará dependurada a caixinha de reclamações? Para onde se virarão os capitalinos? Poder-se-á, de facto, falar de direitos, quando nada se pode fazer para os fazer valer? Quando não existe, claramente, quem nos possa valer em caso de adiamento ad aeternum da realização dos direitos?
Por isso, se torna cada vez mais premente que se deixe de estabelecer direitos sem que sejam estabelecidos os meios competentes para os fazer valer. É preciso, de uma vez por todas, que se comece a equacionar e a pôr de pé mecanismos e interlocutores acessíveis e com poder para fazer valer os direitos consagrados na CR e nas demais leis da República.
A instalação do Provedor de Justiça (ou será uma Provedoria?) já tarda. Não se compreende como é que se pode deixar em banho-maria uma instância tão importante para a salvaguarda dos direitos dos cidadãos. A Provedoria dos Munícipes (ou seria o Provedor?) surge de quando em vez nos discursos políticos, para depois levar sumiço, qual cometa nos céus. É ou não considerado importante para a defesa dos interesses dos munícipes. Se sim, qual a razão (ou as razões) para não se dar o passo?
Virou moda transferir para os cidadãos (e suas associações) a responsabilidade pela defesa e protecção do consumidor. Os cidadãos devem organizar-se de modo a defenderem os seus direitos e interesses, sim senhora. Mas não se deve nunca perder de vista que essa é uma função do Estado. Se as associações de defesa e protecção do consumidor estiverem funcionando bem, óptimo. Nessas circunstâncias, ao Estado bastaria transferir os recursos necessários para que tal serviço público continuasse a ser prestado por organizações da sociedade civil. Não estando, devem os poderes públicos (nacionais e locais) tomarem sobre si a responsabilidade pela defesa e pela protecção do consumidor.
No universo lusófono há dois grandes baluartes de defesa e protecção do consumidor: a DECO, em Portugal, e a PROCON, nas Terras de Vera-Cruz. E ninguém que conheça o historial da PROCON duvida do seu poder e de sua eficácia. E a PROCON é uma instância PÚBLICA de protecção e defesa do consumidor. E não é difícil compreender o surgimento de uma tal autarquia: não havendo um movimento da dita sociedade civil com os necessários empenho e empowerman, compete ao Estado, por intermédio da administração pública, directa ou indirecta, instalar uma instância de defesa e protecção do consumidor. Pelo menos até que os cidadãos tenham condições de assumir a sua própria defesa e protecção e sejam capazes de fazer isso melhor do que o organismo público.
No entanto, por aqui, tanto o Governo nacional como os Governos locais optam por ficar na sombra, esperando que os cidadãos andem às bolandas até que consigam algum nível de organização. Aprova-se uma lei dita de defesa e protecção do consumidor, e ela não é regulamentada, passadas duas décadas; define-se um estatuto para os organismos de defesa do consumidor, junto das Autoridades Reguladoras, e estas fazem o que lhes dá na telha; espera-se que os cidadãos organizados resistam à cartelização, mas não se instala a Autoridade da Concorrência; deixa-se o consumidor entregue a si próprio, e nem se cria um canal especial, junto do Ministério Público e dos Tribunais, que garanta um tratamento célere das acções intentadas contra os provedores de bens e serviços que hajam violado os sacrossantos direitos do consumidor. Canal especial ou instruções permanentes ao MP para dar prioridade às acções intentadas pelas organizações de defesa e protecção do consumidor.
Os direitos são tantos (e a nossa Constituição Política é muito bem referenciada em função disso), mas as coisas estão de tal forma que, nos dias que correm, a defesa e a protecção da propriedade individual e do património das empresas é, cada vez mais, assumida pelos cidadãos e pelas empresas. A prosperidade dos serralheiros e a proliferação de agências de segurança privada (para além dos guardas não enquadrados contratados pelas famílias) são testemunhas desse estado de coisas.
Não diria que o Estado foge às suas responsabilidades. Nem digo que as famílias e as empresas não devam contribuir para a segurança e a inviolabilidade das respectivas propriedades. E não me atreveria a registar que o Estado deva levar os cidadãos ao colo, removendo-lhes todos os obstáculos. Mormente que o consumidor deva cruzar os braços e confiar a sua defesa e protecção exclusivamente aos poderes públicos. Nada disso. O que aqui se questiona é a efectividade dos direitos em uma situação em que inexistem mecanismos para fazê-los valer.
Em tais circunstâncias, competiria sempre aos poderes públicos a assumpção descomplexada do seu papel. Em um Estado social e de direito democrático todos têm direitos e deveres. Até o próprio Estado: tem o direito, exclusivo, de uso lícito da força e tem um acervo grande de deveres em relação aos cidadãos. E o primado da lei, que caracteriza o estado de direito, e o dever de cumprimento da lei, que nos atinge a todos, Estado incluído, faz com que o Estado esteja agindo marginalmente, sempre que deixa um qualquer dever seu ao Deus dará.
E diante disso, a gente cruza os braços deixando que o Estado se desenrasque? Claro que não. Deve-se é exigir que o Estado aja responsavelmente. Que o Estado não fuja às suas responsabilidades. E que faça um pouco como fez em relação à economia.
Durante algum tempo o Estado criou, instalou e explorou empresas públicas, cobrindo domínios que o incipiente (diria mesmo inexistente) tecido empresarial não podia cobrir. Continua, ainda hoje, com acções e participações em empresas estratégicas, como forma de influenciar as coisas em determinado sentido. E pode, ainda hoje, encetar incursões por sectores que ainda não interessem aos privados, à condição de sair e ceder vez ao capital privado logo que o sector se mostre viável e/ou rentável. No que à salvaguarda de direitos diz respeito, o Estado poderia, e deveria, agir de modo similar. Lá onde as organizações dos cidadãos ainda não possam substituir, com vantagens, o Estado, deve este continuar a intervir. Para o bem-estar de todos e felicidade geral da Nação.
Os cidadãos ainda não conseguiram pôr de pé um eficaz organismo de protecção e defesa do consumidor? Então o Estado não pode desligar os interruptores. Que o Governo nacional e/ou os Governos locais ponham de pé estruturas de protecção e defesa do consumidor, ao mesmo tempo que sigam trabalhando no sentido de, a prazo, serem os cidadãos a assumir a incumbência. Que o Estado aprove uma lei virada para a protecção e defesa do consumidor, e a REGULAMENTE em tempo oportuno, a modos de abrir novas perspectivas aos cidadãos. Que na lei referida atrás sejam consagrados recursos destinados a apoiar a acção dos organismos que assumirem o SERVIÇO PÚBLICO de protecção e defesa do consumidor. Por aí.
O livro de reclamações ajuda na relação provedor do serviço/consumidor? Claro que ajuda. Ao Estado bastará estabelecer o princípio do uso do LR? Não, não basta. Os fornecedores de bens e serviços apostam nas limitadas possibilidades de acesso à justiça do consumidor nacional para criarem obstáculos e explorarem a sua boa-fé. Não bastará, por isso, instituir a obrigação de exibição do LR. Mais e melhor do que isso seria a instalação de mecanismos facilitados de acesso a um ente público capaz de dar resposta em tempo real a quem seja negado, por exemplo, o LR; àquele cuja reclamação não tenha tido seguimento; ou àqueles a quem sejam impostas retaliações por causa da sua postura cidadã. Mas não um ente público cujas luxuosas instalações inibam o cidadão comum. Que instalações do tipo existem, sim senhora, apesar dos permanentes apelos à austeridade. O bom mesmo seria catalogar os atentados aos direitos do consumidor como casos de polícia e dar instruções aos policiais para que, quando chamados, «não neguem fogo». Assim, bastaria sair à rua e chamar o policial de giro e fazer valer os nossos direitos.
Pena é que não se poderá catalogar como caso de polícia a recusa reiterada em cumprir um ditame constitucional como, por exemplo, o nº 2 do artigo 10º da CR, o tal que confere um Estatuto Administrativo Especial à Capital da República, e manda que o mesmo seja regulamentado por lei ordinária. Seria o bom e o bonito chamar um Guarda e pedir-lhe que prenda… cala-te boca. Já imaginaram quem a gente mandaria prender? Todos aqueles que (de 1999 ao presente) prestaram juramento solene garantindo que respeitariam e fariam respeitar a Constituição e que fizeram letra morta do artigo 10º. Ocorrem-me, no momento, um bom lote de gente poderosa que poderia ser chamado à pedra.
Mas vamos lá negociar? Não chamo a polícia, à condição desses senhores passarem a respeitar os ditames da Constituição. Feito? E olhem que não deve ser difícil. Basta ver a conversão do Ulisses em relação ao Estatuto A. Especial para a Capital. É pegar ou largar.
E quanto ao direito de reclamar… estamos conversados: não deve ser limitado. Deve-se, por exemplo, deixar de reclamar quando, numa loja, o produto tem um preço na prateleira, enquanto na «caixa» nos cobram um valor superior? Dêem-nos luz, água, pão e palavra qb que, ainda assim, não deixaremos de protestar contra o que achamos que não está certo. Rek!

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