“A VIÚVA VIRGEM”
Por Filinto Elísio Correia e Silva
Devo agradecer a todos por estarem aqui a prestigiar o nascimento de mais um livro, desta feita um romance, cujo autor António Ludgero Correia é dilecto filho desta cidade da Praia que hoje, mais do que nunca, se afirma como babel intelectual e cultural de Cabo Verde. Dizia-me Ludgero Correia há dias que a Praia passa por um grande momento cultural, facto notório e notável, para o bem de Cabo Verde, e, acto contínuo, admiti que o meu interlocutor seria também um dos promotores e protagonistas desta movida praiense. Por isso, antes do livro, esta nova criatura literária, queria saudar e agradecer ao criador deste momento bom, saudável e necessário.
Uma ressalva, pois “noblesse oblige”. Não me compete uma análise crítica do livro, que ora se dá à estampa e com o qual tenho o compromisso desta apresentação. Compromisso que me dá gozo, prazer e orgulho, diga-se de passagem. A análise crítica de um livro, mormente romance, exigiria de mim mais ciência e mais arte, bem como menos ímpeto de leitor livre – assumido Albatroz, de Baudelaire - porquanto seus cânones são de preceitos mais estritos e especializados.
Por conseguinte, não se espere de mim, senão pinceladas referenciais, subsídios, se tanto, de um leitor atento e interessado, ciente e cioso de ver nascer e prosperar, nestas ilhas nossas, os seus narradores implacáveis. A escrita romanesca é trabalho de monta, de montagem e de articulação, que escapa a intelectuais bissextos. Foi-se o tempo em que se acreditava que um livro era produto de um surto de inspiração. Hoje em dia, quase todos sabem que, além de ter talento, um escritor tem de se debruçar sobre seu trabalho, refazê-lo quantas vezes for necessário até que ele tome sua forma definitiva. Já, por isso, o nascer de um romance resulta de uma longa gestação e de um estranho parto, pelo que nos inspira já o simples facto de mais este encontro de cultura, na Biblioteca Nacional.
Muitos teóricos defendem que para o início da vida literária o género apropriado é o lírico; no meio da vida, o dramático; e no entardecer da idade, como diria Eugénio Tavares, o épico, de onde vêm as narrativas mais densas. António Ludgero Correia, inquieto intelectual, começa pelo texto narrativo, por onde muitos terminam. Este é o primeiro aspecto inusitado da seara literária do Autor. E saiba-se que a narrativa é privilégio da maturidade.
Primeiro, foi “Baban, o Ladino”; agora é “A Viúva Virgem”, que nasce sob o signo da água. Logo no início, Ludgero Correia adopta uma atmosfera fantástica que traz a inevitável lembrança de um “Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. (…) Chovia a cântaros. Desde que Samuel se conhecia como gente, nunca vira precipitações tão abundantes. Nem na época própria, mormente em pleno mês de Maio. E não era apenas pelo volume dos bagos ou pela violência com que caíam. A chuvinha lenta das primeiras horas do dia fora-se encorpando, transformando-se, aí pelas nove e meia, em verdadeiro dilúvio (…).
Um dos elementos fundamentais deste romance é o seu enredo (em inglês, plot). Diria até no plural, enredos. O romance de António Ludgero Correia é de enredos múltiplos e engenhosos. Um deles é o mistério sobre a virgindade da viúva, que a sociedade local precisava “destocar”. Que enigma por trás de Maninha, com a viuvez impoluta de dez anos e com o casamento sem filhos? Este enredo em torno da problemática se processa nestes termos:
(…) – Calma, minha filha. São os teus hormónios gritando dentro de ti. Você enviuvou cedo e isso deixa as suas marcas. Mas você é jovem e pode voltar a casar-se e ter filhos. A propósito de filhos, tens que consultar um médico para veres se o problema é contigo ou se era com o falecido.
- O problema era com ele – desatou Maninha a chorar, desalmada e desconsoladamente.
- Calma, menina, calma. Okay, já passou. Já passou. Desculpa lá, mas como é que podes saber que o problema era com ele?
- Eu sou virgem, Lena. Eu sou virgem – e continuou chorando e soluçando desconsoladamente, perante uma dona Lena de boca aberta. (…)
Outro aspecto importante: Os ‘caracteres’ dos personagens bem definidos. Ludgero Correia introduz aqui a personagem central – a Maninha, ainda antes da viuvez.
(…) – Maninha da Várzea da Igreja? Aquela bonitinha que canta na igreja? Aquela que faz aquelas linguiças tão saborosas? Essa, padrinho? (…)
Entretanto, ao longo dos capítulos, encontramos dezenas de outras personagens que ganham importância e se infiltram nos enredos – a Manadona, o Samuel, o Pároco e outras -, sendo o primeiro plano da narrativa ocupada pela linha existencial de Maninha e outros planos preenchidos pelas personagens gravitantes.
Outra questão essencial é o narrador. Ludgero Correia faz uma recusa do conceito de ‘narrador omnisciente’, aquele que sabe tudo da história. Aqui há uma entrega da narrativa a vários narradores intermediários, que ignoram o todo dos acontecimentos e só contam a linha do que sabem, interpretando-a à sua maneira. Isto aproxima Ludgero Correia do romance proustiano, em que o autor, ele-próprio, perante a autonomização das personagens-narradoras enfrente o dilema, diria até a angustia, de imprimir vector estanque aos enredos. Contrariamente ao romance flaubertiano ou mesmo balzaquiano, o autor assume-se múltiplo contador de histórias, qual trama Shakespeariano em que os pontos de fuga se deslocam para comnpor a grande trama afinal, o ritual de “destocar” a Viúva, deixada virgem e próspera, o sair do casulo familiar e social e o assumir da autonomia feminina, quiçá mesmo feminista, de Maninha e o insólito sentimental amoroso, quebrando paradigmas sociais, familiares e religiosos, entre a Viúva Virgem o Senhor Samuel Barbosa.
É por isso que as personagens vão surgindo com seus dramas e derivando entre o eros e o tanatos, o sacro e o diabólico, em construções que vão da mais singela pureza ao mais engenhoso profano, como é o caso dos desejos de Maninha, em paralelo ao quadro psico-existencial de Emma Bovary, no romance “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert.
(…) Pôs o vestido xadrês que Dona Lena lhe comprara na Quarta na Praia, colocou um trancelim de prata ao pescoço, colocou uns sapatos pretos. Colocou-se à frente do espelho do quarto e submeteu-se ao teste dos seus sentidos. Gostou do que viu, do que sentiu e do seu próprio cheiro. Dona Lena caprichara no eau-de-toillete. Levou as mãos ao peito e, timidamente, apalpou os seios. Estavam lá. E ainda estavam firmes. (…).
Mas, antes, a construção do cerco existencial à personagem central:
(…) Quando o marido de Maninha falecera, ela era ainda muito nova. Vigiada pela família do falecido e por sua própria família, guardara luto pesado e castidade por mais de dez anos. As duas famílias reunidas decidiram que a madrinha dela deveria ir morar com ela para evitar que caísse em tentação.
Se bem o pensaram, melhor o fizeram. Manadona mudou-se de mala e cuia para a casa da afilhada. Por determinação dela, ninguém entrava ou saía da casa da afilhada depois do Sol se pôr (…)
Surpreende também no romance a economia dos elementos, como tempo, espaço e personagens. Sabe ele que é difícil administrar muita gente em pouco espaço e pouco tempo; pois as personagens têm peso e ocupam espaço. Assim, vão se desfilando as mais estranhas histórias e trajectórias. É a relação de Samuel com suas filhas, Isabela e Zizi.
(…) – Mas nossos amigos não fazem isso – protestou Zizi timidamente.
-Amigos, não. Vossos homens. Acham que me enganam? Quem fica como uma galinha tonta só porque se vai encontrar com um amigo? Quantas vezes já vos vi saírem sem comer para ir encontrar-se com esses filhos da puta?
-Credo papá.
-Credo, nada. E esses banhos longos que agora tomam? E essa troca de calcinhas, três quatro vezes por dia? Principalmente a senhora, dona Isabela. Você que só tocava calcinha debaixo de porrada, agora passa o tempo brigando por elas. Quem pegou minha calcinha? Esta não é minha. A minha é novinha. Comprei seis novinhas anteontem. Diabos carreguem esses sacaninhas. (…)
São os diálogos entre Manadona e o Pároco, este interessado em Maninha.
(…) – Credo, padre. Rezar em português? Isto é um absurdo. Quem foi o pateta que inventou isto? – abespinhou-se Manadona.
- Psst! É coisa dos comunistas que estão rodeando o Santo Padre. É preciso ter cuidado. Parece que eles manobram o homem do jeito que querem – confidenciou o padre.
- E o que o gente vai fazer?
- Resistir, Manadona, é claro. Resistência silenciosa, é certo, mas vamos ter que resistir. Vou organizar um grupo de reflexão e oração em latim. A senhora é a primeira contactada. Aceita? (…)
São as conversas dos mirones, quando passa a Viúva a caminho da Igreja. As fantasias de sensualidade em torno de Maninha, que arrancavam libido no paráco, no enfermeiro e na rapaziada da esquina. Os mexericos de meio provinciano sobre os bens da Viúva e sobre o controlo apertado da madrinha Manadona. Os “abusos” de Alípio, que não desgostavam de todo a Viúva, balbuciada virgem:
(…) – gostosa – ouvia Alípio sussurrar, sempre que a madrinha afrouxava a vigilância nas idas à igreja.
Ela fingia não estar nem aí, mas sentia um calorzinho por dentro sempre que ele se aproximava dela.
Alípio sempre arranjava uma forma de se aproximar dela:
- A bênção Manadona – pedia Alípio, tentando colocar-se entre Manadona e Maninha.
- Vade retro, Satanás. Vai pedir a bênção à tua madrinha. Sai daí. Vamos Maninha. (…)
E até o desastroso primeiro encontro entre Samuel e Maninha Vieira:
(…) O encontro com o senhor Samuel deixou Maninha nervosa. Não sabia se se sentava ou se ficava de pé. Levantava-se e voltava-se a levantar de seguida.
-Veja lá o desaforado. Quem pensa ele que é? – seguia resmungando. Um açougueiro. Um magarefe. Um homem que ganha a vida tirando a vida de coitados animais. Quem pensa ele que é.
Lena havia desistido de tentar acalmá-la. Maninha não queria ouvir ninguém. Parecia que só a sua própria voz lhe dava algum consolo. (…)
“A viúva Virgem”, é um romance maduro, de grande densidade e suspense, escrito surpreendentemente por um intelectual de quem, até há dias, ninguém vaticinava um lugar próprio e merecido na moderna literatura de Cabo Verde. Este livro desenvolve-se num universo inédito, logo a articulação de todos os seu pormenores formam um verdadeiro mundo, um recriado mundo. O eixo entre São Domingos e a Cidade da Praia, mas com referências pelo Santiago adentro, recriando lugares até então inéditos na ilustração literária e peças etnográficas importantes, para não dizer preciosas. Igualmente, as figuras-tipo que formula, como a costureira Lena (a tentadora do libido adormecido de Maninha), o senhor Pachinho e a dona Nema (figuras marcantes do meio) e outras. Para não se falar das transposições simbólicas, como o facto de ser Caiumbra a sombra de Coimbra, que emprestava áurea e peso ao lugar, legitimadores de prestígio social das pessoas, tal fora o caso de Patrício. É esta a riqueza de “A Viúva Virgem”.
António Ludgero Correia, escrevendo a epopeia das criaturas que fazem parte do nosso quotidiano, ainda que as ficcione nos limites elevados da boa escrita, se torna, entre nós, um intelectual fundamental. Ademais, ele assume o que qualquer bom livro deve ser: tem de convencer o leitor que está a viver a história, que é verdade, fazendo-o deixar a realidade para se sentir na pele das personagens ou como um observador muito próximo. A forma como ele nos convida a acompanhar a relação entre Samuel e Maninha é magistral:
(…) E Samuel já nem se lembrava como se lhe instalou na cabeça a ideia de domar aquela potranca. Nunca nenhuma mulher o tratara desse jeito. E logo uma fedelha! Ele quase que podia ser pai dela.
- Mas não sou, não é? – recriminava-se.
Resolvera que Maninha Vieira haveria de vir comer-lhe à mão e Samuel era teimoso que nem um burro. Falou da sua ideia a Manadona que foi aos arames:
- Então ela tem razão. Você faltou-lhe ao respeito – ademoestou.
- Nada disso. Você me conhece. Fiquei ofendido e agora vou mostrar-lhe quem é Samuel Barbosa. (…)
Não só por esta precocidade inusitada, mas também e sobretudo pelo alegórico, pelo fantástico e pela finitude que subjazem do seu texto, o livro merece ser “destocado”, aqui e agora. Pessoalmente, deliciei-me com seus vai-vens, sua riqueza sintáctica e vocabular, suas imagens tão vivas, suas brincadeiras semânticas. Por isso, recomendo-o como leitura prazenteira e necessária.
Muito Obrigado.
Por Filinto Elísio Correia e Silva
Devo agradecer a todos por estarem aqui a prestigiar o nascimento de mais um livro, desta feita um romance, cujo autor António Ludgero Correia é dilecto filho desta cidade da Praia que hoje, mais do que nunca, se afirma como babel intelectual e cultural de Cabo Verde. Dizia-me Ludgero Correia há dias que a Praia passa por um grande momento cultural, facto notório e notável, para o bem de Cabo Verde, e, acto contínuo, admiti que o meu interlocutor seria também um dos promotores e protagonistas desta movida praiense. Por isso, antes do livro, esta nova criatura literária, queria saudar e agradecer ao criador deste momento bom, saudável e necessário.
Uma ressalva, pois “noblesse oblige”. Não me compete uma análise crítica do livro, que ora se dá à estampa e com o qual tenho o compromisso desta apresentação. Compromisso que me dá gozo, prazer e orgulho, diga-se de passagem. A análise crítica de um livro, mormente romance, exigiria de mim mais ciência e mais arte, bem como menos ímpeto de leitor livre – assumido Albatroz, de Baudelaire - porquanto seus cânones são de preceitos mais estritos e especializados.
Por conseguinte, não se espere de mim, senão pinceladas referenciais, subsídios, se tanto, de um leitor atento e interessado, ciente e cioso de ver nascer e prosperar, nestas ilhas nossas, os seus narradores implacáveis. A escrita romanesca é trabalho de monta, de montagem e de articulação, que escapa a intelectuais bissextos. Foi-se o tempo em que se acreditava que um livro era produto de um surto de inspiração. Hoje em dia, quase todos sabem que, além de ter talento, um escritor tem de se debruçar sobre seu trabalho, refazê-lo quantas vezes for necessário até que ele tome sua forma definitiva. Já, por isso, o nascer de um romance resulta de uma longa gestação e de um estranho parto, pelo que nos inspira já o simples facto de mais este encontro de cultura, na Biblioteca Nacional.
Muitos teóricos defendem que para o início da vida literária o género apropriado é o lírico; no meio da vida, o dramático; e no entardecer da idade, como diria Eugénio Tavares, o épico, de onde vêm as narrativas mais densas. António Ludgero Correia, inquieto intelectual, começa pelo texto narrativo, por onde muitos terminam. Este é o primeiro aspecto inusitado da seara literária do Autor. E saiba-se que a narrativa é privilégio da maturidade.
Primeiro, foi “Baban, o Ladino”; agora é “A Viúva Virgem”, que nasce sob o signo da água. Logo no início, Ludgero Correia adopta uma atmosfera fantástica que traz a inevitável lembrança de um “Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. (…) Chovia a cântaros. Desde que Samuel se conhecia como gente, nunca vira precipitações tão abundantes. Nem na época própria, mormente em pleno mês de Maio. E não era apenas pelo volume dos bagos ou pela violência com que caíam. A chuvinha lenta das primeiras horas do dia fora-se encorpando, transformando-se, aí pelas nove e meia, em verdadeiro dilúvio (…).
Um dos elementos fundamentais deste romance é o seu enredo (em inglês, plot). Diria até no plural, enredos. O romance de António Ludgero Correia é de enredos múltiplos e engenhosos. Um deles é o mistério sobre a virgindade da viúva, que a sociedade local precisava “destocar”. Que enigma por trás de Maninha, com a viuvez impoluta de dez anos e com o casamento sem filhos? Este enredo em torno da problemática se processa nestes termos:
(…) – Calma, minha filha. São os teus hormónios gritando dentro de ti. Você enviuvou cedo e isso deixa as suas marcas. Mas você é jovem e pode voltar a casar-se e ter filhos. A propósito de filhos, tens que consultar um médico para veres se o problema é contigo ou se era com o falecido.
- O problema era com ele – desatou Maninha a chorar, desalmada e desconsoladamente.
- Calma, menina, calma. Okay, já passou. Já passou. Desculpa lá, mas como é que podes saber que o problema era com ele?
- Eu sou virgem, Lena. Eu sou virgem – e continuou chorando e soluçando desconsoladamente, perante uma dona Lena de boca aberta. (…)
Outro aspecto importante: Os ‘caracteres’ dos personagens bem definidos. Ludgero Correia introduz aqui a personagem central – a Maninha, ainda antes da viuvez.
(…) – Maninha da Várzea da Igreja? Aquela bonitinha que canta na igreja? Aquela que faz aquelas linguiças tão saborosas? Essa, padrinho? (…)
Entretanto, ao longo dos capítulos, encontramos dezenas de outras personagens que ganham importância e se infiltram nos enredos – a Manadona, o Samuel, o Pároco e outras -, sendo o primeiro plano da narrativa ocupada pela linha existencial de Maninha e outros planos preenchidos pelas personagens gravitantes.
Outra questão essencial é o narrador. Ludgero Correia faz uma recusa do conceito de ‘narrador omnisciente’, aquele que sabe tudo da história. Aqui há uma entrega da narrativa a vários narradores intermediários, que ignoram o todo dos acontecimentos e só contam a linha do que sabem, interpretando-a à sua maneira. Isto aproxima Ludgero Correia do romance proustiano, em que o autor, ele-próprio, perante a autonomização das personagens-narradoras enfrente o dilema, diria até a angustia, de imprimir vector estanque aos enredos. Contrariamente ao romance flaubertiano ou mesmo balzaquiano, o autor assume-se múltiplo contador de histórias, qual trama Shakespeariano em que os pontos de fuga se deslocam para comnpor a grande trama afinal, o ritual de “destocar” a Viúva, deixada virgem e próspera, o sair do casulo familiar e social e o assumir da autonomia feminina, quiçá mesmo feminista, de Maninha e o insólito sentimental amoroso, quebrando paradigmas sociais, familiares e religiosos, entre a Viúva Virgem o Senhor Samuel Barbosa.
É por isso que as personagens vão surgindo com seus dramas e derivando entre o eros e o tanatos, o sacro e o diabólico, em construções que vão da mais singela pureza ao mais engenhoso profano, como é o caso dos desejos de Maninha, em paralelo ao quadro psico-existencial de Emma Bovary, no romance “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert.
(…) Pôs o vestido xadrês que Dona Lena lhe comprara na Quarta na Praia, colocou um trancelim de prata ao pescoço, colocou uns sapatos pretos. Colocou-se à frente do espelho do quarto e submeteu-se ao teste dos seus sentidos. Gostou do que viu, do que sentiu e do seu próprio cheiro. Dona Lena caprichara no eau-de-toillete. Levou as mãos ao peito e, timidamente, apalpou os seios. Estavam lá. E ainda estavam firmes. (…).
Mas, antes, a construção do cerco existencial à personagem central:
(…) Quando o marido de Maninha falecera, ela era ainda muito nova. Vigiada pela família do falecido e por sua própria família, guardara luto pesado e castidade por mais de dez anos. As duas famílias reunidas decidiram que a madrinha dela deveria ir morar com ela para evitar que caísse em tentação.
Se bem o pensaram, melhor o fizeram. Manadona mudou-se de mala e cuia para a casa da afilhada. Por determinação dela, ninguém entrava ou saía da casa da afilhada depois do Sol se pôr (…)
Surpreende também no romance a economia dos elementos, como tempo, espaço e personagens. Sabe ele que é difícil administrar muita gente em pouco espaço e pouco tempo; pois as personagens têm peso e ocupam espaço. Assim, vão se desfilando as mais estranhas histórias e trajectórias. É a relação de Samuel com suas filhas, Isabela e Zizi.
(…) – Mas nossos amigos não fazem isso – protestou Zizi timidamente.
-Amigos, não. Vossos homens. Acham que me enganam? Quem fica como uma galinha tonta só porque se vai encontrar com um amigo? Quantas vezes já vos vi saírem sem comer para ir encontrar-se com esses filhos da puta?
-Credo papá.
-Credo, nada. E esses banhos longos que agora tomam? E essa troca de calcinhas, três quatro vezes por dia? Principalmente a senhora, dona Isabela. Você que só tocava calcinha debaixo de porrada, agora passa o tempo brigando por elas. Quem pegou minha calcinha? Esta não é minha. A minha é novinha. Comprei seis novinhas anteontem. Diabos carreguem esses sacaninhas. (…)
São os diálogos entre Manadona e o Pároco, este interessado em Maninha.
(…) – Credo, padre. Rezar em português? Isto é um absurdo. Quem foi o pateta que inventou isto? – abespinhou-se Manadona.
- Psst! É coisa dos comunistas que estão rodeando o Santo Padre. É preciso ter cuidado. Parece que eles manobram o homem do jeito que querem – confidenciou o padre.
- E o que o gente vai fazer?
- Resistir, Manadona, é claro. Resistência silenciosa, é certo, mas vamos ter que resistir. Vou organizar um grupo de reflexão e oração em latim. A senhora é a primeira contactada. Aceita? (…)
São as conversas dos mirones, quando passa a Viúva a caminho da Igreja. As fantasias de sensualidade em torno de Maninha, que arrancavam libido no paráco, no enfermeiro e na rapaziada da esquina. Os mexericos de meio provinciano sobre os bens da Viúva e sobre o controlo apertado da madrinha Manadona. Os “abusos” de Alípio, que não desgostavam de todo a Viúva, balbuciada virgem:
(…) – gostosa – ouvia Alípio sussurrar, sempre que a madrinha afrouxava a vigilância nas idas à igreja.
Ela fingia não estar nem aí, mas sentia um calorzinho por dentro sempre que ele se aproximava dela.
Alípio sempre arranjava uma forma de se aproximar dela:
- A bênção Manadona – pedia Alípio, tentando colocar-se entre Manadona e Maninha.
- Vade retro, Satanás. Vai pedir a bênção à tua madrinha. Sai daí. Vamos Maninha. (…)
E até o desastroso primeiro encontro entre Samuel e Maninha Vieira:
(…) O encontro com o senhor Samuel deixou Maninha nervosa. Não sabia se se sentava ou se ficava de pé. Levantava-se e voltava-se a levantar de seguida.
-Veja lá o desaforado. Quem pensa ele que é? – seguia resmungando. Um açougueiro. Um magarefe. Um homem que ganha a vida tirando a vida de coitados animais. Quem pensa ele que é.
Lena havia desistido de tentar acalmá-la. Maninha não queria ouvir ninguém. Parecia que só a sua própria voz lhe dava algum consolo. (…)
“A viúva Virgem”, é um romance maduro, de grande densidade e suspense, escrito surpreendentemente por um intelectual de quem, até há dias, ninguém vaticinava um lugar próprio e merecido na moderna literatura de Cabo Verde. Este livro desenvolve-se num universo inédito, logo a articulação de todos os seu pormenores formam um verdadeiro mundo, um recriado mundo. O eixo entre São Domingos e a Cidade da Praia, mas com referências pelo Santiago adentro, recriando lugares até então inéditos na ilustração literária e peças etnográficas importantes, para não dizer preciosas. Igualmente, as figuras-tipo que formula, como a costureira Lena (a tentadora do libido adormecido de Maninha), o senhor Pachinho e a dona Nema (figuras marcantes do meio) e outras. Para não se falar das transposições simbólicas, como o facto de ser Caiumbra a sombra de Coimbra, que emprestava áurea e peso ao lugar, legitimadores de prestígio social das pessoas, tal fora o caso de Patrício. É esta a riqueza de “A Viúva Virgem”.
António Ludgero Correia, escrevendo a epopeia das criaturas que fazem parte do nosso quotidiano, ainda que as ficcione nos limites elevados da boa escrita, se torna, entre nós, um intelectual fundamental. Ademais, ele assume o que qualquer bom livro deve ser: tem de convencer o leitor que está a viver a história, que é verdade, fazendo-o deixar a realidade para se sentir na pele das personagens ou como um observador muito próximo. A forma como ele nos convida a acompanhar a relação entre Samuel e Maninha é magistral:
(…) E Samuel já nem se lembrava como se lhe instalou na cabeça a ideia de domar aquela potranca. Nunca nenhuma mulher o tratara desse jeito. E logo uma fedelha! Ele quase que podia ser pai dela.
- Mas não sou, não é? – recriminava-se.
Resolvera que Maninha Vieira haveria de vir comer-lhe à mão e Samuel era teimoso que nem um burro. Falou da sua ideia a Manadona que foi aos arames:
- Então ela tem razão. Você faltou-lhe ao respeito – ademoestou.
- Nada disso. Você me conhece. Fiquei ofendido e agora vou mostrar-lhe quem é Samuel Barbosa. (…)
Não só por esta precocidade inusitada, mas também e sobretudo pelo alegórico, pelo fantástico e pela finitude que subjazem do seu texto, o livro merece ser “destocado”, aqui e agora. Pessoalmente, deliciei-me com seus vai-vens, sua riqueza sintáctica e vocabular, suas imagens tão vivas, suas brincadeiras semânticas. Por isso, recomendo-o como leitura prazenteira e necessária.
Muito Obrigado.
No comments:
Post a Comment