Monday, July 16, 2007

O poeta FILINTO ELÍSIO na apresentação do livro «BABAN, O LADINO», EM 30/04/07

ALGUNS SUBSÍDIOS PARA A LEITURA DA OBRA “BABAN, O LADINO”, DE ANTÓNIO LUDGERO CORREIA

Por Filinto Elísio*

O romance Baban, o Ladino, de António Ludgero Correia, Prémio SONANGOL de literatura 2006, é uma proposta de prosa inédita e inusitada. Algumas marcas, bem expressivas, contribuem para fazer desta obra uma narrativa diferente, diria até singular dentre os que tenho lido, no campo da literatura cabo-verdiana contemporânea.

O primeiro aspecto que ressalta é a deslocação permanente do autor, que é narrador central, nas entrelinhas, mas fá-lo de forma marginal no texto aparente. Umas vezes, através do diálogo-narrativo. Outras vezes, através do diálogo subentendido, mas assumidamente explicativo da trama, afinal as venturas e desventuras de Baban, durante tempos de carestia e fome.

Indo directamente ao livro, impõe-se dar pistas aos leitores em relação à centralidade, de uma personagem-força, o Baban, que “viveu e reinou na Praia”, a reconstituir toda a trama. Como a personagem-força de “D. Quixote de La Mancha”, de Cervantes, esse Alonso Quijano, acompanhado do não menos emblemático Sancho Pança, Baban se densifica ao longo do romance, impondo o seu ritmo de ser e de estar no espaço de acção. É um Baban que surge, logo nas primeiras páginas do romance, nos anos da Fome de 40, com “a metade de uma casca de coco numa mão, pedindo um bocado de comida”.

Outro aspecto a reter é o foco múltiplo da narrativa. O autor desloca os pontos do narrador e Dona Lídia, mãe do narrador matricial, comanda a descrição ontológica:

1º - A caracterização da personagem central – o Baban – afinal protagonista de histórias burlescas na cidade da Praia, vindo do zoon-out do interior de Santiago e chegado ao zoon-in do espaço urbano e uterino da reprodução romanesca;

2º - A explicação do espaço narrativo – Vila Nova, cincundância e circunstância, alargando-se ou diminuindo-se - recriando uma visão, quase cinematográfica de espaço móvel e também activo protagonista versus o espaço fixo e pacífico, trilha de fundo das histórias;

3º - A fixação temporal – anos 40, da Fome, das Pragas e da Grande Guerra, dos Expedicionários Portugueses -, fazendo do Tempo um activo na reconfiguração do Homem e do Espaço. O Tempo, neste romance do Ludgero Correia, é Tempo-Actor-Participante, elemento reconstrutor igualmente;

4º - O pictórico antropo-social – o Homem em face do sócio-económico e do sócio-cultural, no caso o Baban e outras personagens gravitantes, em reformulação psíquica e da prática social em Tempos de Fome.

Destes quatro aspectos que reputo por importantes, retiraria o pictório antropo-social para centrar o meu modesto olhar de leitor interessado, apartando de mim a veleidade de ser uma voz autorizada da crítica literária e a intenção de especialista da literatura contemporânea de Cabo Verde.

Terei, neste pretenso gesto analítico, uma rápida passagem sobre a minha leitura – de apenas uma demão pela semântica geral e uma meia demão pela sintaxe particular, como dia o Poeta Cearense, Dimas Macedo – contando-vos, com intertextualidade assumida, o mérito da questão em Baban, o ladino.

I – PICTÓRICO ANTROPO-SOCIAL

O pictórico antropo-social é descrito aqui com singularidade, sobressaindo quadros-referências seguintes:

(...) A horda de famintos colocava-se em pontos estratégicos de onde pudessem identificar as casas, de cuja chaminé saísse alguma fumaça. Identificados os alvos, os integrantes distribuíam-se pelas poucas casas de chaminés fumegantes (…), isto na página 09.

O aspecto sonho/pesadelo, toda a reconstrução onírica remetida da temporalidade-Fome, perspectivados tanto da Terra Dentro, como da Cidade da Praia, Nossa Senhora da Graça, pelo Nha Lela, lá de Frouxa-Chapéu, nos seus sonhos e recados:

(…) Ele viu sete feixes de espigas rechonchudas e depois sete atados de espigas mofinas, sendo que as últimas devoravam as primeiras; na semana seguinte, sonhou com sete bois gordos que eram devorados por sete bois magros. Sonhos de Nha Lela, menino… até eu tenho medo. (…)

Em verdade, a alegoria decalcada da Maldição sobre o Egipto dos Faraós e do jogo dos Sete Cabalísticos da Religião Hebraica, é reformulada pelo autor para compor a antevisão da desgraça, com que o Homem, no espaço cabo-verdiano, antevê a Fome Braba. Di-lo Ludgero Correia: (…) fome, sede, carestia de tudo. E pior, praga de parasitas. Piolhos, lêndeas, percevejo. Nem sei se sobrará alguém para contar a estória – anunciou o mais velho. (…)

O livro começa a cruzar a psique antropo-social – do Homos em torno da sobrevivência – como os retirantes, desta feita não do sertão-cidade de Graciliano Ramos ou de Josué de Castro, nem da itenerância inter rural de “Os Flagelados do Vento Leste”, de Manuel Lopes, mas dos deslocamentos intra-urbanos, sobretudo numa segunda descrição narrativa, bem à Emile Zola, de realismo consequente.

(…) As chaminés das casas de Nha Alexandra, Nha Mariazinha, Nené de Nha Pomba e Nha Maria Sabo, entre a Planície de Vila Nova e o Planalto de Ponta d’Agua.(…)

Este pictórico refaz-se a partir da composição da linguagem. É magistral quando o Narrador (Autor ou Dona Lídia?) criam a subversão e a alteridade da linguagem. O Baban de (…) um bocado de comida e um pingo de água (…) que se desloca para (um bocado de comida e um pingo de grogue (…). O composto comida-água pelo composto de comida-grogue. A indicar o primado do dramático intro existencial, tal como nos ensinou o filósofo alemão Heiddegger, sobre o sócio-existencial Sartreano, onde o quase mutismo e apatia implicam a paralaxe dos desejos entre a Vida (Água) e Esquecimento (Grogue). E um Baban preferindo este a aquele, em plena Fome (Ausência Real de Comida, primeira parcela do composto), que exacerbava os giros pela Travessa.

Tão logo ali nos diálogos a formulação sincrética, de cultura e religião, mais condição antropo-existencial, diria tipo, da ilha de Santiago, revelado em certa dimensão na Cidade da Praia. O sincretismo reformatador de identidade.

(…) – Credo. Nada disso, senhor José (nome retirado do Bíblico São José).

- Pára com com essa merda de Senhor José. Eu sou Nené de Nha Pomba. Ou Matcho Bedjo Nha Tuna. Essa de me chamares senhor José é para me meteres o dedo…

- Credo, senhor Nené…
- Nené de Nha Pomba, já disse - cortou Nené. E sai da minha porta - rematou já quase engasgando. (…)

II – CARACTERIZAÇÃO DA PERSONAGEM CENTRAL

A caracterização da personagem central é feita de forma sábia, em retrospectiva ontológica. Baban torna-se realmente ladino, mercê dos diálogos com o Mestre, ainda criança, quando os pais desaparecem e partem, primeiro, para a Praia, e, depois, para o Sul.

Ficaria, mais tarde, mas ainda em plena Fome, na psique de Baban, a tornar-se adulto a ideia do Sul, mesclada à dupla perda edipiana. O autor faz, na página 47, o retrato dramático da opulência, que explicaria o escapismo e a evasão, não só da Mãe-Terra, mas do Filho-Ser, rumo ao Sul.
(…) De São Tomé, dizia-se que chovia sem parar. E que bastava que um passaroco levantasse o bico para cima e grasnasse “Chove, chuva” e lá vinham catadupas de água (…)
e, ainda,
(…) Havia fruta-pão em abundância, peixe seco e fubá (…).
E o Eldorado da opulência foi também descrito nestes termos:
(…) Angola era também um destino muito bom. Rica Colónia. Aliás era de lá que vinham a farinha de pau, o açúcar, o milho redondo e o lafo-lafo e várias espécies de feijão (…).

Sozinho no mundo, Baban se constrói, em amadurecimento freudiano, procurando mover-se em espaços relacionais. São os excelentes diálogos com o Professor que lhe dão a dialéctica de linguagem, o idiolecto sócio-linguístico para sobreviver, mais tarde, no espaço-fundamento, a Cidade da Praia. Alguns destes magistrais diálogos-aprendizagens devem ser sublinhados, nomeadamente:

(…) – Bem. Já reparei que sempre que o nome do Santo começa por uma consoante, se usa São; quando começa por uma vogal, usa-se Santo – enunciou Baban.

- E então? Em que ficamos? É São ou Santo Cipriano? – Indagou o professor, exigindo uma aplicação prática da conclusão.

- É Santo Cipriano – respondeu Baban, categórico.

- Como é que é? – Gritou o Professor exasperado, pouco menos que apopléctico.

- Professor, a regra parece ser de aplicar apenas aos Santos da igreja e com nomes em português. Mas para Santos porreiros, com nome da terra, a regra não é aplicável. Pode-se dizer São Cipriano, mas em relação ao nosso Santo é como o povo diz: Santo Cipiriano – explicou Baban. (…). Este diálogo conforma-se na página 34.

Por conseguinte, a personagem torna-se viva, esperta, sagaz, pronta para enfrentar a Praia, nos tempos da Fome. Baban fez-se homem aos 12 anos, sem recurso à adolescência. Seu Santo de eleição, seu recurso religioso e matafísico, perante a realidade que se recrudesce em drama, é um Santo, mais mágico que milagreiro. Um Santo astucioso, que o próprio chamamento desafiava os encontros e regras de consoantes e vogais. A Gramática, indicia ordem e disciplina, formulação jurídica, paramento que se relativiza e se subverte em face do Absurdo Absoluto, que é a fome – o tal Absurdo Absoluto e desintegrado que nos recorda “A Peste”, de Albert Camus. A Gramática não se sustenta perante o Novo Humanismo, por vezes, sob a aparência burlesca que se emana do quadro dramático, como foi a grande lição filosófica de Camus, resgatada aqui, mutatis mutandis, por Ludgero Correia.

A personagem densifica-se nos vários momentos em que é caracterizado. O namoro com a Isaura, linda menina, de família integrada. Os anos de escola. A morte do Senhor Mulato, o professor, com livro de São Cipriano aberto em cima do peito, numa referência relacional à personagem central, à morte-amadurecimento, à morte fim e recomeço de ciclo. Ao livro símbolo, semiótico e sêmea, tal qual o Trenó Rosebund, do filme O Cidadão Kane, de Orson Wells, que alavanca na peça-id e na peça-retrospecta todo o novo sentido da vida, mesmo que à hora da morte. Assim, Ludgero Correia descreve Baban diante do Mestre, do Alter-ego destruído:

(…) Então, levantou-se e enxugou as lágrimas. Lavou-se, mudou de roupa e dirigiu-se à casa do seu Mestre. Seu Mestre, seu Pai, Seu Guia Espiritual. (…), na página 63.

Com o recrudescer da estiagem, Baban resolve zarpar para a capital, Praia de Santa Maria da Vitória, cidade abençoada por Nossa Senhora da Graça, onde começaria o seu giro de esperteza e de sobrevivência nos subúrbios da Vila Nova e circum-vizinhos. Entroniza-se, no seio de uma família praiense, depois de ter dito a senha de entrada, com os rituais de qualquer iniciação.
(…) – então foi você que herdou os livros dele? – interessou-se Nené.

- Fui eu, sim senhor.

- Cita lá então o título de 4 livros de Camilo Castelo Branco que ele tinha no seu acervo. Se foste seu discípulo, hás de saber que Camilo era seu escritor preferido – desafiou Nené.

- Tinha lá “Amor de Perdição”, “Eusébio Macário”, “A Corja” e “A Queda de um Anjo”. Satisfeito? E já agora, seu espertalhão, o escritor preferido do teu tio não era Camilo. Era Eça de Queirós. Não vais querer que eu enumere as obras de Eça que tinha na sua estante?

- Izan, acho que é ele mesmo. Até da casca de banana que lhe lancei ele escapou. Tenho a certeza de que ele é quem ele diz que é – garantiu Nené.
(…), Nas páginas 82 e 83.

Chegados aqui, temos a personagem feita, matricializada, completamente construída e largada nas páginas do livro para um enredo jocoso e irónico, mas eivado de rebeldia, de um Baban que, segundo o próprio Autor, vendeu o serrote do patrão e gasta o dinheiro em pândegas com mulheres; compra um porco, a pedido de novo patrão, e só regressa uma semana depois e de mãos a abanar, inventando artifícios para se safar; come e bebe à custa de Nhô Mano e assina vales pelas tabernas com o nome de Burt Lencaster; em Ribeirão Chiqueiro, paga por uma vitela mas leva uma vanha prenha e desaparece do mapa. É um Herói-Maldito que se materializa ao longo deste romance inusitado.

Por uma opção consciente, não desmontarei as minhas ilações em relação à fixação temporal, pois os anos 40 e seus afluentes próximos foram determinantes para o Mundo e para Cabo Verde. Esta temporalidade exigiria de mim alguns rudimentos e mais tempo de que não disponho, infelizmente. Tão pouco abordarei o espaço narrativo, visto por Ludgero Correia, que vê esta cidade como um activo fundamental da História de Cabo Verde e das estórias que formulam o romanesco. Ludgero Correia é um profundo cabo-verdiano que não regateia o seu activismo pela Praia e tal virtude está implícito neste romance que faz de Vila Nova e circundância, a Cidade da Praia em geral, e outros espaços da ilha de Santiago, como os Órgãos Pequenos, ponto de partida da sua personagem central, numa cronografia que lembra um pouco o menino de Caleijão, de São Nicolau, em “Chiquinho”, de Baltasar Lopes da Silva, que se densifica doravante pelos espaços urbanos do Mindelo e do Mundo.

Em remate final, atesto que Ludgero Correia nos lega aqui uma grande obra, de leitura recomendável e prazeirosa. Em que se ri da primeira à última página. Aprisionando a angustiosa lágrima perante o Absurdo Absoluto. Aquele que se esconde sob a singeleza e a candura de um “Quimera de Ouro”, de Charles Chaplin. Porque Ludgero Correia remete todo ele à cinematografia dos nossos dias…

*Poeta

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