Pensar a família cabo-verdiana pelos parâmetros europeus conduz, inexoravelmente, a erros de planeamento, mormente quando o foco é a protecção social.
Nas famílias ocidentais, de que as famílias arianas da Europa do Oeste e dos Estados Unidos da América constituem o paradigma, os filhos são desligados da família com a maioridade e os idosos são encaminhados para asilos ao primeiro sinal de senilidade. Os primeiros têm mais sorte porque continuam sendo apoiados de alguma forma; os últimos levam apenas um cobertor e a garantia do pagamento das mensalidades do asilo. Tios são parentes meio afastados. Aliás, o termo tio tornou-se mais forma de tratamento de pessoas mais ou menos próximas da família e cada vez menos a referência a um laço de parentesco.
Quando sociedades como a nossa operam a importação acrítica de modelos, acaba-se por se chegar a situações esquisitas. Legislações preparadas nessas bases não raras vezes constituem letra morta, tal a força das nossas tradições e do nosso modo de relacionar e o anacronismo das situações importadas.
Uma lei que diga a um digno foguense, santantonense ou santiaguense que não tem direito a licença de nojo por morte de um primo, constituirá letra morta. Qual o foguense que não guarda "nodjado" por um primo falecido? Que santiaguense não remove montanhas para socorrer um tio em dificuldades? Que santantonense se sentiria feliz sabendo que comeu e atirou sobras aos porcos, enquanto parentes seus padecem algures?
A importação acrítica de formas de organização social está se constituindo em verdadeira ameaça à efectividade da protecção social devida pelo Estado aos seus cidadãos, mormente aos mais vulneráveis.
As famílias ocidentais sabem que podem contar com o Estado para certas e determinadas coberturas sociais com que as famílias cabo-verdianas ainda não podem contar. Mesmo hoje quando se fala da falência do Estado social nalgumas latitudes, a verdade é que as famílias, ainda assim, contam com apoios que traduziriam o sonho de consumo da larga maioria das famílias cabo-verdianas. Subsídios de inserção social, acesso gratuito a medicamentos para doenças crónicas, habitação social, subsídio de desemprego, etc., sonho de consumo para muito boa gente entre nós, constituem regalias corriqueiras nas ditas sociedades ocidentais.
Entre nós, um tio, um primo ou um sobrinho que não tenha sido bafejado pela boa-sorte vê-se em palpos de aranha para conseguir tratamento para uma doença crónica que o acometa, seja ela a diabetes, a hipertensão e outras doenças coronárias, a aids, ou uma doença mental. Como não perceber que um sobrinho se sinta na obrigação de aviar uma receita passada em seu nome e passar os medicamentos ao tio ou tia que sofre de um mal crónico mas não tem cobertura médica e medicamentosa?
No confronto entre a sustentabilidade e a efectividade do sistema nacional de protecção social, há que torcer pela efectividade.
Efectividade significa cobertura para quantos precisem, não havendo lugar a segmentação dos cidadãos. Sustentabilidade significa capacidade de gerar e ou mobilizar recursos na medida das necessidades de financiamento. O casamento da sustentabilidade com a efectividade pode e deve ser realizado em uma sociedade como a cabo-verdiana. O Estado de Direito Democrático cabo-verdiano é, OU DEVE SER, antes de mais, um Estado Social. E em um Estado Social o sistema de protecção social deve integrar sub-sistemas contributivos e de comparticipação do Estado, a modos de se garantir a efectividade da cobertura. Tanto os contribuintes do INPS como os sem cobertura contratada têm direito à saúde, traduzida em tratamentos profilácticos e cobertura médica e medicamentosa. Cabe ao Estado, enquanto provedor da protecção social dos seus nacionais, articular as coisas de modo inclusivo, i.e., de modo a que ninguém morra à míngua de cuidados de saúde, mormente em caso de doenças crónicas e/ou degenerativas. Até lá, e em nome da solidariedade social, cabe a cada um de nós lutar com as armas ao nosso alcance para que funcione entre nós uma cobertura social efectiva e inclusiva.
O sobrinho que tem um plano de saúde que não deixe o tio morrer à míngua porque não pode comprar um medicamento que o ajuda a regular a sua pressão alta, a sua diabetes ou o seu coração com arritmia; que continue pedindo ao seu médico a prescrição dos medicamentos de que o tio precisa, nos estritos limites da sua necessidade.
O médico que continue salvando vidas, atendendo a sobrinhos solidários com o tio desprotegido; que continue a prescrever ao tio medicamentos em nome do sobrinho, nos estritos limites da necessidade do seu tratamento.
O Estado que ponha de pé um mecanismo hábil, ágil e eficaz de cobertura aos desprotegidos atingidos por doenças crónicas (e não só). Em nome de um Estado que persegue um desenvolvimento sustentável e... INCLUSIVO.
O que não está certo é que em nome da sustentabilidade de um sub-sistema - ALIMENTADO PELOS TRABALHADORES E PELOS EMPREGADORES E ADMINISTRADO, UNILATERALMENTE, PELO ESTADO - se façam apelos patéticos para que o sobrinho alinhe com o Estado (que tem a obrigação de prover cuidados de saúde e gere o subsistema contributivo) para manter o tio excluído do tratamento de que precisa e que, PARA O TIO, faz a diferença entre a vida e a... MORTE.
E até que o Estado aja no sentido da não exclusão de nenhum cidadão cabo-verdiano, necessário se torna que não se perca de vista que a nossa noção de família não tem nada a ver com a ideia que norteia o quadro normativo dos países de onde importamos as ideias. Copiar acriticamente as praxis dessas latitudes é uma atitude alienante que precisa ser combatida. Sejamos mais selectivos, na senda do que Peter Drucker chama de cleptocracia inteligente e que se traduz, na prática, pela apropriação de ideias inteligentes e pela sua prévia adaptação à nossa realidade cultural.
Negar o acesso a tratamento de doentes crónicos faz dos respectivos médicos meros espectadores, assistindo do consultório, manietados, à morte dos seus pacientes. Porque não têm dinheiro; porque não têm cobertura contratada; porque fica mal a um sobrinho apoiar o tio; porque a inclusão teima em não sair dos discursos para as praxis.
Até que se faça o que precisa ser feito em prol de uma maior inclusão social, estou com a Dra. VANDA AZEVEDO e não abro.